domingo, 7 de novembro de 2021

O poço

 Paulo Mendes*

Estão ali de novo, os dois, olhando para o poço, o velho poço, como fizeram há 50 anos. Nem parece verdade uma coisa assim ter acontecido, ninguém acredita se a gente contar, melhor nem contar, deixar assim. Só entre eles, parado, como aquela água cristalina e fresca que bebiam quando tinham... quanto mesmo? 18, 19? Por aí. Ah, mas eram tão felizes, ambos, ela aquela morena “florão de tropa”, como ele dizia, brincando, repetindo as pirraças que o tio lhe contava. Ele, um guri macanudo, viçoso, criado no campo, tropeando, carroceando. Ela vivia na cidade, mas vinha quase sempre que podia para ficarem por ali, ao redor do poço, na chácara dos pais dele. Nem era tão longe, uns 40 minutos a pé. Um tirinho curto, na saída da cidade. 

‒ Foram tempos bons aqueles, né, Amado? 

‒ Bah, loucos de especiais... 

Depois de um silêncio que se seguiu, enquanto Amado servia o mate e passava para as mãos já enrugadas de Nena, o cusco Tigre se aproximou, cheirou as bombachas do dono e se deitou enrodilhado, como que querendo ouvir a conversa do casal de mateadores. 

Ah, amigos, o colóquio foi animado, longo e carinhoso. Haviam se reencontrado, Amado e Nena, quando não parecia mais possível. No passado, quando ele foi servir o Exército em São Gabriel a perdeu de vista por alguns anos. Quando voltara à Vila Rica, Nena estava casada e com filhos. Amado sentira-se perdido, desorientado, passou a beber muito, vivendo com pessoas bem diferentes dele, até que decidiu tentar a vida noutros lugares. Percorreu o Estado, trabalhando aqui e ali, fazendo de tudo. Por fim, decidiu largar os pequenos empregos, juntou as economias, mais a venda de um pedaço de terra de herança e comprou um caminhão. Durante anos conheceu tantos lugares, tanta gente, fez inúmeras amizades, loucos amores, mas sempre lembrava da Nena. “Deve estar cheia de filhos”, avaliava. Ele teve um filho lá no Mato Grosso, que agora estava um homem feito, cursando universidade. O vê pouco, mas com o advento da internet conversam pelo celular. 

Ela passara a vida esperando-o, apesar da situação. Tornara-se professora do Ensino Fundamental, gostava de plantas, flores e fazer pequenas esculturas em madeira, desenhar, escutar antigas canções italianas. Muitas vezes, mesmo durante o casamento, pensava em procurá-lo, mas nunca teve coragem. “Não deve querer me ver”, raciocinava. “É uma artista”, lembrava Amado nas madrugadas em que perdia o sono pelos caminhos do Brasil Central, em meio ao calorão insuportável da boleia, onde dormia. Assim como ela, nunca a procurou. “Nem lembra mais de mim”, avaliava erroneamente, porque assim é a vida, assim ocorrem os desencontros. 

Agora se acharam por acaso. Ele voltou à cidade para o enterro da mãe, que morrera com mais de 90 anos. Alguém lhe disse que ela estava separada. Neste dia, pela manhã, a encontrara no supermercado e a convidara para tomar um mate. “Lá perto do poço”, brincou. Ela riu. Agora estão ali, outra vez, solitos, eles e o passado. Ela era calma e tranquila. Ele, um remanso, água de rio. Nena queria ser puxada por um balde, Amado queria sossegar e ficar ao lado dela quieto, como água de poço. 

(De “Campereadas”, Correio do Povo, novembro de 2021) 

*Paulo Mendes é autor do ótimo livro “Campereadas ‒ Crônicas, contos e causos do Sul”.

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