domingo, 28 de novembro de 2021

Palavras (portuguesas) em vias de extinção

 

Uma história para o dia 27 de maio,

escrita em 2003... relê-la aquece-me o coração... 

Vinha eu no outro dia, Avenida da Liberdade abaixo, a caminho do Rossio, quando, qual não foi o meu espanto, dei de caras com a minha tia Suzete. A tia Suzete tem quase 80 anos e quando lhe perguntei o que andava a fazer por aquelas bandas ela respondeu-me: “Olha, filha, vou ali beber uma ginja!”. 

“Só a tia Suzete, mesmo”, pensei eu. E comecei a lembrar-me de quando era pequena. a tia Suzete sempre foi uma mulher muito forte, nos dois sentidos, física e espiritualmente, é daquelas mulheres à moda antiga, cantava fados aos fins-de-semana nos clubes de Campolide. Pois, quando eu era pequena, a minha mãe, por vezes, deixava-me em casa dela, mas eu fazia sempre um berreiro, não sei bem por quê, até gostava muito dela, sobretudo quando ela me dizia: “Toma lá 100 merréis, filha, (entenda-se, cem mil reis) para ires comprar um raja” - e sempre que a vejo, lembro-me desta frase. porque é que já não dizemos cem mil reis parece-me óbvio, mas raja... por que raio deixamos de dizer raja? quando é que ficou decidido que começaríamos a dizer gelado? E com este encontro com a tia Suzete comecei a lembrar-me de outras palavras que caíram em desuso. O resultado foi uma enxurrada de frases e palavras que me lembro de ouvir na infância e que, com o passar o tempo, ficaram esquecidas. 

Na verdade, o que eu gostava mesmo, era de ir para casa da avó Maria que me incutia algumas responsabilidades, como a de eu ir à padaria da Mercedes; dizia-me muitas vezes: “Olha, filha, leva 50 mérreis para ires ao pão, guarda-os na algibeira, fica atenta à demasia, podes ficar com o que sobejar para comprares um caramelo” - e a Mercedes perguntava-me: “O que é que quer esta freguesa?” E eu sentia-me crescida. Mas a avó Maria, no meio de tanta bondade, também tinha crises de fúria e, às vezes (quase nenhumas), também se zangava e dizia-me: “Sai daí, não te empoleires! olha que dás uma queda e ainda levas uma galheta por cima”. Em casa da minha avó, onde passei muito tempo, até aos sete anos, as coisas tinham outros nomes: a televisão era o aparelho, o rádio era a telefonia, às fotografias chamávamos retratos e aos anúncios reclames. Os meus pais, quando chegavam ao fim da tarde, perguntavam-me se tinha feito os trabalhos da escola e a minha avó, que estava sempre do meu lado, dizia: “Deixa a miúda”, ao que o meu pai respondia: “Se isto agora é assim quando fores grande não tens o canudo”. 

Gostava tanto desses dias em casa da avó Maria, ela dedicava-me todo o seu tempo. De manhã levava-me à escola na Rua das Trinas, depois ia buscar-me para o almoço, às vezes fazia-me açorda, era a minha comida preferida, e gritava lá do fundo da cozinha: “Queres primeiro a sopa ou o conduto?” E da parte da tarde, deixava de ter tempo para ela, porque eu queria fazer tudo... e agora penso, como é que uma pessoa de 7 anos e outra de 55 podem ter tanta coisa para conversar 12 horas por dia? Tinha muita paciência, ela... às vezes punha-me em cima do sofá aos pulos, naquela altura chamávamos maple e ela, da sua máquina de costura gritava: “Olha que isso ainda vai pr'o galheiro, arre!”. Nos dias de sol no inverno, ela vestia-me o kispo, apanhávamos a carreira 28 e lá íamos as duas para o Jardim da Estrela, ao fim da tarde voltávamos para casa e ela dizia-me: “Senta-te aí, que a avó traz-te uma bucha”, e lá ficava eu a ver os bonecos animados, como ela lhes chamava... e aquele conforto para mim era tudo. 

E hoje em dia, já ninguém passa a infância com os avós, não há tempo para passar tardes à janela, já não se salta à corda nem ao elástico, já não se joga aos berlindes, ao pião ou ao ioiô e muito menos nos lembramos destas palavras. Eu não consigo lembrar-me quando deixei de as utilizar, nem por quê (muito possivelmente porque mudei de escola e deixei de ir para casa da avó Maria). E lá fui eu, perdida nestes pensamentos, até a Praça do Comércio, a pensar se será este o verdadeiro sentimento português, o da saudade. Então, dei meia volta, e fui à espinheira beber uma ginja. 

Publicado por J.

Nenhum comentário:

Postar um comentário