segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Essas mãos

 Paulo Mendes*

Fotografia da internet

Ah, essas mãos sujas de terra que seguram toscos porongos em mates de erva lavada e curtos, como a própria esperança. Mãos de gente humilde que se criou na lida dura, trabalhando de sol a sol, sem carteira assinada, sem direitos, apenas obrigações. Trago na retina imagens dessas generosas mãos cheias de sulcos e calos, que fizeram gemer a terra, revolveram vergas no coice do arado tracionado a junta de bois. São dias, meses, anos, décadas, séculos de labuta por esses fundões de campo, gente que sempre teve as mãos machucadas, mas que levantaram ranchos de pau a pique, formaram moradas, e essas viraram povoados, vilas e depois cidades. Primeiro abrindo picadas no meio da mataria selvagem e inóspita, mais tarde, caminhos e, por fim, estradas reais. Saudemos essas mãos valentes dos avoengos, dos precursores, dessa gente que restou esquecida nas encruzilhadas. 

Lá de onde vim, apertei muitas mãos assim, calosas, cheias de cicatrizes de arames farpados, em terríveis laçaços nos alambrados infindos do Pampa, repletas de cortes de sogas, cordas e maneadores de doma, braços quebrados por coices e manotaços de redomão. Amigos e amigas, só eu sei o que minha alma campesina traz por debaixo das asas do poncho. Dizem, por que você não escreve sobre as façanhas da nossa gente? Não elevas a poética dos nossos usos e costumes, as guerras pela manutenção das sesmarias, das nossas mais caras tradições, os duelos de arma branca, os entreveros de capitães e generais, por que não exaltas nossos heróis que tombaram ensanguentados para defender a bandeira do pago? Respondo, tudo isso faço, mas fico com as mãos humildes dos que nunca seguraram espadas nem adagas, mas os simples utensílios de trabalho, as enxadas, os picões, as máquinas de plantar milho. As mãos que semearam o trigo, colheram e dele fizeram o pão. Meu pai José Mendes tinha as mãos assim, retorcidas, dedos grossos de quebraduras mal curadas, com cheiro de fumo em rolo. Minha mãe, dona Mirica, as trazia ressecadas de tanto lavar roupa em sanga, trabalhar nas lavouras de mandioca, feijão e fumo, de tanto cozinhar ao redor de fogões a lenha, de labutar dia e noite, sem domingos, feriados ou férias. Um dia, numa pequena pausa, viajei com ela de trem para uma cidade vizinha. Acredito que tenha sido a única viagem que fizemos juntos. Enquanto comíamos uns pedaços de galinha com farofa, ela olhou para a janela, para o mundo de campos e vacas que deixáramos para trás e disse: “Queria que a vida fosse sempre assim, uma viagem sem fim...”.  

São benditas essas mãos de peões que desenharam o mapa da nossa terra gaúcha, mãos de homens, mulheres e crianças tão pobres neste estado tão rico. Olho para essas mãos escuras e penso nas históricas desigualdades. E agora observo meio que envergonhado estas minhas lisas mãos de jornalista. Lembro que elas já foram também riscadas e calosas. Minhas mãos hoje escrevem pelas outras que não tiveram a mesma sorte. Juro, enquanto viver estarei sempre ao lado delas, defendendo, cuidando, com a arma da palavra em prol desses que nunca tiveram voz. Esta “Campereada” é para vocês, os que perambulam sem trégua pelas glebas. Nunca esqueço a mão que me embalou no berço. Jamais esquecerei. 

(Do jornal Correio do Povo, janeiro de 2023)

* Paulo Mendes é colunista do jornal Correio do Povo. Escreve a coluna  “Campereada”, publicada aos domingos no caderno Correio Rural. Como o nome já diz, é um espaço voltado para as coisas do campo. 

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