domingo, 1 de janeiro de 2023

O Malandro

 Chico Buarque

O malandro, na dureza,
Senta à mesa do café.
Bebe um gole de cachaça,
Acha graça e dá no pé.
 

O garçom, no prejuízo,
Sem sorriso, sem freguês,
De passagem pela caixa,
Dá uma baixa no português.
 

O galego acha estranho,
Que o seu ganho tá um horror.
Pega o lápis, soma os canos,
Passa os danos pro distribuidor.
 

Mas o frete vê que ao todo
Há engodo nos papéis,
E pra cima do alambique
Dá um trambique de cem mil réis.
 

O usineiro, nessa luta,
Grita: “ponte que o partiu!”
Não é idiota, trunca a nota,
Lesa o Banco do Brasil.
 

Nosso banco tá cotado
No mercado exterior.
Então taxa a cachaça
A um preço assustador.
 

Mas os ianques, com seus tanques,
Têm bem mais o que fazer.
E proíbem os soldados
Aliados de beber.
 

A cachaça tá parada,
Rejeitada no barril.
E o alambique tem chilique
Contra o Banco do Brasil.
 

O usineiro faz barulho
Com orgulho de produtor.
Mas a sua raiva cega
Descarrega no carregador.
 

Este chega pro galego,
Nega arrego, cobra mais.
A cachaça tá de graça,
Mas o frete como é que faz?
 

O galego tá apertado
Pro seu lado não tá bom,
Então deixa congelada
A mesada do garçom.
 

O garçom vê o malandro,
Sai gritando: “Pega ladrão!”
E o malandro autuado,
É julgado e condenado culpado
Pela situação.
 

******* 

A época da estreia do musical “Ópera do Malandro”, Chico Buarque descreveu e justificou o ambiente da peça em entrevistas a Isto É e Manchete: 

“Nós pegamos a Lapa, os bordéis, os agiotas, os contrabandistas, os policiais corruptos, os empresários inescrupulosos. (…) Tomamos como ponto de partida o que o italiano chama de Malacittá, o bas fond. Esta Lapa (que) começava a morrer era o prenúncio de uma série de outras mortes: da malandragem, de Madame Satã, de Geraldo Pereira, de Wilson Batista. Foi o fim da era de ouro do sambista urbano carioca. “Essa história está contada na letra de “Homenagem ao Malandro”, uma das melhores composições do musical: “Eu fui fazer um samba em homenagem / à nata da malandragem que conheço de outros carnavais / eu fui à Lapa e perdi a viagem / que aquela tal malandragem não existe mais…” E prossegue, retratando o “novo” malandro, “o malandro profissional”, “oficial”, “candidato a malandro federal”, arrematando: “Mas o malandro pra valer / – não espalha-/ aposentou a navalha / (…) / até trabalha / mora lá longe e chacoalha / num trem da Central…” “Homenagem ao Malandro” é um samba rasgado, com direito a solo de trombone do grande Maciel, breques e uma adequada interpretação de Chico Buarque. No álbum duplo do musical, só lançado em dezembro de 79, este samba é cantado pelo malandro Moreira da Silva, que vive assim o personagem João Alegre. 

Fonte: Livro 85 anos de Música Brasileira Vol. 2, 1ª edição, 1997, editora 34

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