terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Cegueira seletiva

 Cláudia Laitano

A destruição começou antes, muito antes. Só não viu quem não quis ou não conseguiu ver ‒ talvez intoxicado pelos vapores de desinformação e radicalismo que se espalharam pelo país como um gás venenoso e inflamável. Nos últimos quatro anos, o quebra-quebra foi o único projeto levado adiante consistentemente do primeiro ao último dia de governo. Nem os romanos deixaram tantas ruínas para os historiadores do futuro. Ainda assim, parte da população escolheu o autoengano e a cegueira seletiva: acreditou no que quis, viu o que quis ver. A fatura dessa inconsequência foi cobrada ontem em Brasília. 

Muito antes da invasão dos prédios públicos desse domingo (8.1.2023), os despojos do saque colocado em marcha a partir de 2019 já se amontoavam por todos os lados. Impossível ignorar o número de mortos da covid e não se perguntar quantas vidas poderiam ter sido poupadas se Bolsonaro tivesse comprado vacinas na hora em que elas se tornaram acessíveis. Impossível não notar a devastação da Amazônia, articulada diligentemente com apoio das autoridades que deveriam, por lei, protegê-la. A cegueira seletiva preferiu ignorar os dois maiores crimes que o governo Bolsonaro cometeu, talvez porque fossem grandes demais. Confortáveis com o que não viam (e satisfeitos com o que achavam que viam), pediram mais quatro anos de qualquer jeito ‒ mesmo à força, mesmo contra a Constituição. Uma coalizão política nos salvou da hecatombe. 

Na última quinta-feira (5.1.2023), uma reportagem exibida pela Globonews mostrou sinais bem mais prosaicos de destruição. O estado em que Jair e Michelle Bolsonaro entregaram o Palácio do Planalto não é, nem de longe, a pior parte do legado de incúria deixada pelo casal antes de fugir do país, mas ofereceu uma imagem de fácil assimilação por qualquer dono ou dona de casa: móveis depredados, infiltrações no teto, pisos arrebentados, obras de arte valiosas atiradas no chão ou deixadas ao sol para desbotar. Inquilinos relaxados. Foi isso o que tivemos no poder durante os últimos quatro anos. E não apenas como metáfora. A invasão de ontem (8.1.2023) foi o arremate da obra. 

Haja o que houver nas próximas horas, o dia 8 de janeiro de 2023 vai ser lembrado como uma data trágica para a nossa democracia, mas talvez tenha efeitos que as hordas alucinadas que invadiram os prédios de Brasília ainda não tenham sido capazes de prever. Talvez as marcas de destruição levem antigos apoiadores a despertar da cegueira seletiva que os faz confundir terrorismo com oposição democrática ou liberdade de opinião. Talvez esse banho de realidade sirva como antídoto para a alucinação sebastianista que tomou conta do país. Mas, para isso, é preciso que as punições sejam amplas, gerais, irrestritas ‒ e imediatas. 

(Do jornal Zero Hora, 9 de janeiro de 2023)

Obras de arte vandalizadas

Quadro As Mulatas de Di Cavalcanti, perfurado à faca nos pontos em círculos vermelhos. 

Estátua “A Justiça”, defronte ao prédio do Supremo Tribunal Federal (STF) pichada por terroristas bolsonaristas. 

Relógio raro do século XVIII é destruído durante ataque em Brasília.

Terrorista em ação destruindo mais uma obra de arte, contestando uma eleição limpa e democrática, sem noção de seu ato estúpido e selvagem.


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