sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Nasce um malandro*

 

(...) 

Pé pisando no chão. Magrelo na camisa furada. Pálido, encardido, dei para bater perna de novo, catando virações pelos cantos e pelos longes da cidade. Vasculhei, revirei, curti fome quietamente, peguei chuva e sol no lombo; lavei carro, esmolei nos subúrbios, entreguei flor, fui guia de cego, pedi sanduíches nas confeitarias e nos botecos, corri bairros inteiros Mooca, Penha, Cambuci, Tucuruvi, Jaçanã... me enfiei nos buracos e muquinfos mais esquisitos, onde nem os ratos da polícia chegam, ajudei nos ferros-velhos, me juntei a pipoqueiros, nos portões do Pacaembu e lá no Hipódromo de Cidade Jardim sapequei muita charla, servi a mascates lá nas portas do Mercado da Lapa, me dei com gente de feira, vendi rapadura, catei restolhos de batatas às beiras do Tamanduateí, morei na favela do Piqueri, me virei com jornais nos trens suburbanos da Sorocabana; malandrei e levei porrada, corri da polícia, mudei não sei quantas vezes, dei sorte, dei azar, sei lá, fucei e remexi. 

Andando por aí como um bicho, decorei os nomes de todos esses becos, praças, largos, ruas. 

Minhas mãos ficaram quadradas como mãos de pedreiro. 

Aprontei, sem exagero, tudo isso e mais algumas, que os caras da imprensa, interessados só na minha grandeza, nunca escreveram. 

No entanto, tudo tem seu senão e até aí havia sido só uma parte. Muitos anos de janela, muito estrepe, muita subida e muita piora me permitem dar fé de que tudo tem seu senão. Eu ainda era um trouxinha. Cadê picardia? 

Uma criança que não conhecia o resto do balangolé ‒ cadeia, maconha, furto, jogo, mulher. 

Pois. Assim, até que os quinze anos, quando Laércio Arrudão e eu nos topamos. 

(...) 

Engraxando lá uns tempos nas caixas da entrada da barbearia, que eu conheci, bem-ajambrado e já senhor, no terno claro de brilhante inglês, que fazia a gente olhar, mão luzindo um chuveiro e dentes brancos muito direitinhos, um mulato muito falado nas rodas da malandragem, professor de picardia, dono de suas posses e ô simpatia, ô imponência, ô batida de lorde num macio rebolado! Laércio Arrudão. 

Que foi pelos meus olhos acesos e verdes ou pela minha cara de esperto muito acordado; que foi pela mão de Deus ou por uma trampolinagem do capeta. Mas foi a minha maior colher de chá, o meu bem-bom, a minha virada nesta vida andeja. 

Laércio Arrudão me topou e meu deu uma luz, me carregando para empregado lá na zona, no boteco da Alameda Nothmann. Ali, no Bom Retiro. Pegado aos trilhos do bonde, na esquina da Rua Itaboca, defronte à Rua dos Italianos; ali, naquele muquinfo escuro, onde minha vida virou e a que os vadios das curriolas, os trouxas das ruas, os tiras das rondas, as minas, as caftinas, os invertidos, as empregadas da zona e os malandros encostavam o umbigo no balcão pedindo coisas, balangando seus corpos e queimando o pé nas bebidas. E cujo nome, de muito peso e força, era repetido de boca cheia na fala da malandragem. Boca de Arrudão. 

Pela primeira vez eu morava em algum lugar. 

(...) 

*(Outra parte do conto “Paulinho Perna Torta” de João Antônio)


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