Um romance conturbado
Juraci (Correia de Araújo), que atendia pelo nome artístico de Ceci, era dançarina da boate Apolo, um
lugar pouco familiar da Lapa, região central do Rio. Noel, assíduo
frequentador, a conheceu em 1934 e nunca mais pensou seriamente em outra mulher
‒ nem mesmo em sua própria esposa. Viveram um amor complicado, mas que gerou
grandes sambas (a música novamente agradece). Dama do Cabaré, Eu Sei
Sofrer e Pra que Mentir são
algumas delas. Em O Maior Castigo que Eu
Te Dou, Noel sintetizou a relação de
amor e ódio por Ceci.
A derradeira canção destinada a Ceci foi Último Desejo, escrita quando o poeta da Vila já estava debilitado pela tuberculose, doença que o mataria antes de completar 27 anos. No leito de morte, cantarolou a canção para Vadico, um de seus mais frequentes parceiros. Ele pediu que entregasse uma cópia a Ceci. O amigo levou a letra da música à amada de Noel e, ao se despedir, achou por bem esclarecer: “Acho que ele te castiga um pouco nesse samba, Ceci”.
Dama do Cabaré
Foi num cabaré na Lapa
Que eu conheci você,
Fumando cigarro,
Entornando champanhe no seu
soirée.
Dançamos um samba,
Trocamos um tango por uma
palestra,
Só saímos de lá meia hora
Depois de descer a orquestra.
Em frente à porta um bom
carro nos esperava,
Mas você se despediu e foi
pra casa a pé.
No outro dia, lá nos Arcos eu
andava
À procura da Dama do Cabaré.
Eu não sei bem se chorei no
momento em que lia,
A carta que recebi, não me
lembro de quem,
Você nela me dizia que quem é
da boemia,
Usa e abusa da diplomacia,
Mas não gosta de ninguém.
Foi num cabaré na Lapa...
Eu Sei Sofrer
Quem é que já sofreu mais do
que eu?
Quem é que já me viu chorar?
Sofrer foi o prazer que Deus
me deu,
Eu sei sofrer sem reclamar.
Quem sofreu mais que eu não
nasceu,
Com certeza, Deus já me esqueceu.
Mesmo assim não cansei de
viver,
E na dor eu encontro prazer.
Saber sofrer é uma arte
E pondo a modéstia à parte,
Eu posso dizer que sei sofrer.
Quanta gente que nunca sofreu,
Sem sentir, muitos prantos
verteu.
Já fui amado, enganado,
Senti quando fui desprezado
Ninguém padeceu mais do que eu.
Pra que mentir
Pra que mentir?
Se tu ainda não tens
Esse dom de saber iludir.
Pra quê, pra que mentir?
Se não há necessidade de me trair.
Pra que mentir?
Se tu ainda não tens
A malícia de toda mulher.
Pra que mentir?
Se eu sei que gostas de outro,
Que te diz que não te quer.
Pra que mentir tanto assim?
Se tu sabes que eu já sei
Que tu não gostas de mim.
Tu sabes que eu te quero,
Apesar de ser traído,
Pelo teu ódio sincero,
Ou por teu amor fingido.
O maior castigo que eu te dou
O maior castigo que eu te dou
É não te bater,
Pois sei que gostas de
apanhar.
Não há ninguém mais calmo
Do que eu sou,
Nem há maior prazer
Do que te ver me provocar. (bis)
Não dar importância
A sua implicância,
Muito pouco me custou.
Eu vou contar em versos
Os teus instintos perversos,
É este mais um castigo
Que eu te dou.
A porta sem tranca
Te dá carta branca
Para ir onde eu não vou.
Eu juro que desejo
Fugir do seu falso beijo
É esse mais um castigo
Que eu te dou.
Último Desejo
Nosso amor que eu não esqueço
E que teve o seu começo
Numa festa de São João.
Morre hoje sem foguete,
Sem retrato e sem bilhete,
Sem luar, sem violão.
Perto de você me calo,
Tudo penso e nada falo,
Tenho medo de chorar.
Nunca mais quero o seu beijo,
Mas meu último desejo,
Você não pode negar.
Se alguma pessoa amiga
Pedir que você lhe diga,
Se você me quer ou não.
Diga que você me adora,
Que você lamenta e chora
A nossa separação.
Às pessoas que eu detesto,
Diga sempre que eu não presto,
Que meu lar é o botequim.
Que eu arruinei sua vida,
Que eu não mereço a comida,
Que você pagou pra mim.
No auge da polêmica entre Wilson Batista e Noel Rosa, os compositores se encontraram em um bar ao lado dos Arcos da Lapa. O clima foi amistoso. Wilson abriu um sorriso e disse: “Noel, tenho mais uma aqui pra você”, e cantou “Terra de Cego”. O músico ficou intrigado com a melodia, que considerou muito boa. Propôs, então, uma parceria. Sentou-se em uma mesa e, pouco tempo depois, estava pronta Deixa de Ser Convencida. A única parceria entre ambos, foi destinada a quem? Sim, a ela, Ceci.
Deixa de Ser Convencida
Noel Rosa e Wilson batista
(1935)
Deixa de ser convencida,
Todos sabem qual é
Teu velho modo de vida.
És uma perfeita artista, eu
bem sei,
Também fui do trapézio
Até salto mortal
No arame eu já dei. (bis)
E no picadeiro desta vida,
Serei o domador,
Serás a fera abatida.
Conheço muito bem acrobacia,
Por isso não faço fé
Em amor, em amor de parceria.
(Muita medalha eu ganhei!)
(Do Almanaque de Cultura Popular da TAM, agosto de
2008)
P.S. Todas as músicas citadas neste texto estão na internet com intérpretes de várias épocas.
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