Carlos Galvão Krebs
Carlos Galvão Krebs, nascido em Santa Maria /RS em 1914*,
bacharel em direito e filosofia, especializou-se em Geografia, História e Artes Plásticas. Jornalista e folclorista, foi diretor do Instituto de Tradição e
Folclore, da Secretaria de Educação e Cultura do Rio Grande do Sul. (Fonte: Ari
Martins, Escritores do Rio Grande do Sul, UFGRS/IEL, 1978).
*Não temos a data de seu
falecimento.
A bebida popular no Brasil, de Norte
a Sul, é a cachaça. O Rio Grande do Sul não escapa a isso. As três armas que o
gaúcho usa, paradoxalmente contra o calor e contra o frio, são o pala, o
chimarrão e... a cachaça.
Precisamente por ser a bebida popular
por excelência, é que a cachaça vem despertando a atenção dos folcloristas nos
últimos tempos. Desde o sociólogo Gilberto Freyre, desde o respeitabilíssimo
Luis da Câmara Cascudo, até José Calasans que publicou Cachaça, moça branca na
série oficial das edições do Museu do Estado da Bahia.
Seguindo a trilha, vamos alinhavar
aqui o pouco que sabemos a respeito do folclore da cachaça no Rio Grande do
Sul.
A sinonímia
Como em toda a parte do país, também
aqui a voz mais comum para designar a aguardente é cachaça. Mas se fala muito
em caninha, cana e canha, por influência de cana, forma castelhana. Às vezes se
ouve dizer branquinha. Um dos sinônimos mais curiosos que temos ouvido é rama,
"Meter rama" é beber muito, especialmente caninha. Depois da
descoberta de Fleming como na Bahia, também se diz no Rio Grande, "Bota aí
uma penicilina".
A mais famosa
Sem dúvida alguma, pelo que temos
ouvido no estado fora dele, referida por gaúchos saudosos do pago, a mais
famosa cachaça do Rio Grande do Sul é a caninha azulada, de Santo Antônio da
Patrulha. Sob a luz natural apresenta uma bela coloração azulada, conseguida à
base de casca de bergamota segundo uns, ou de carvão vegetal segundo outros.
Infelizmente, como Santo Antônio fica na rota das praias atlânticas, sua
cachaça veio sendo por demais solicitada. Disto resulta uma queda de qualidade.
Na própria fonte de produção, nos chegamos adquirir a azulada ainda morna,
recém saída do alambique.
As marcas de cachaça
(...) A coleta de rótulos para
coleção exige uma técnica muito simples. Muitos rótulos são impressos em papel
de pouco peso, isto é, papel muito fino. E, freqüentemente, os produtores usam
goma muito forte. Daí surgir dificuldades para a retirada dos rótulos que se
rasgam à menor tentativa. Entretanto, basta deitar a garrafa horizontalmente,
cobrindo o rótulo com um pano leve, sobre o qual se derrama vagarosamente o
conteúdo de uma chaleira de água fervendo. Ao final, o rótulo pode ser
destacado com relativa facilidade e com prejuízo mínimo para a sua integridade.
O ritual dos bebedores
Os bebedores da campanha do Rio
Grande conservam uma bela forma para beber tradicionalmente sua cachaça. Velha
fórmula e sempre nova, porque antiga e atual. Chega um gaúcho a uma venda
qualquer. Cumprimenta todos e ordena ao bodegueiro que "bote" uma
dose de cana. Sempre há pelos cantos alguns guascas bebericando e conversando.
Servida a cana, o recém chegado apanha o copo e o passa sem beber - ao
que lhe está mais próximo. Este recusa:
– Não,
senhor está em boa mão!
Só então o convidado apanha o copo e
bebe um trago. E passa a caninha ao seguinte da roda. Ao terminar a volta, sobra
ao pagante um gole exatamente igual ao que todos beberam. Aquele que paga – e
isto é essencial à gentileza gaúcha – é sempre o último a beber.
Acreditamos que haverá muitas outras
fórmulas para registrar. Entretanto não nos parece existirem no Rio Grande do
Sul aquelas loas, lodaças e glosas de que fala Calasans na Bahia, seja para
pedir um gole, seja para agradecer uma bicada.
Anedotário
Embora relatando um gaúcho, certo dia
deu com os costados num consultório médico. Depois do exame, o doutor lhe
proibiu terminantemente a cachaça. Em casa, o pobre homem deu para sentir uma
dor de cabeça tremenda. Não teve dúvida, foi à venda e mandou botar a dose que
então se chamava "quatrocentão de cana". De uma só vez metia no copo
três dedos; o polegar, o indicador e o médio da mão direita. Em seguida,
enquanto dois dedos esfregavam a cachaça na testa para passar a dor, o guasca
chupava o polegar avidamente...
Também a outro pelo duro foi proibida a cachaça. Ao voltar ao doutor, este não viu nenhuma melhora com o tratamento. Pergunta severamente:
– O senhor
não bebeu cachaça, mesmo?
– Não, senhor! Quando eu
tava com muita gana, botava farinha de mandioca num prato, despejava cachaça em
cima, mexia bem e... comia o pirão!
A cachaça na poesia popular
O estudante Mário Vieira recolheu, em
1950, na Estância de Umbá, município de Cruz Alta, uma deliciosa
"décima" sobre a cachaça. Ouviu-a do negro Adolfo, posteiro da
fazenda e cantador nas horas vagas. Adolfo morreu no verão de 1953 para 1954.
Não fosse a coleta de Mário Vieira e, talvez, tivéssemos perdido para sempre
estes saborosos versos:
Saudade, tenho saudade
Da terra onde nasci,
Saudade duma aguardente
Da cachaça que eu bebi.
A cachaça é minha prima,
O vinho meu primo irmão.
A cachaça eu bebo em copo,
O vinho em garrafão.
Eu não gosto da cachaça
E o vinho não posso ver,
Quando eu pego na garrafa,
Deixo os outros sem beber.
Uma moça me pediu
Que eu deixasse de beber,
Eu de beber eu não deixo
De um porre eu quero morrer.
No fundo de um alambique,
Vou fazer minha sepultura,
Que mesmo depois de morto,
Quero viver na fartura.
Da garrafa eu faço a vela,
Da pipa faço o caixão.
Do funil faço a mortalha,
Me botem um copo na mão.
Quando eu morrer ninguém chora,
Quem chora são as garrafa.
Eu quero que o povo diga:
Morreu o pai da cachaça!
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