domingo, 22 de junho de 2014

Canção do Exílio e suas paródias



Paródia

Os modernistas realizam, em todas as artes, uma aproximação crítica das obras do passado. No universo literário, a releitura de textos famosos das escolas anteriores torna-se uma forma de rejeição ou de admiração. Com frequência, os modernos terminar por reescrever alguns dos textos consagrados sob uma perspectiva de humor: é a paródia.

Um dos livros de crítica literária de Mário de Andrade chama-se A escrava que não é Isaura, numa evidente alusão ao romance de Bernardo Guimarães. Poucos poetas resistiram à chance de parodiar a antológica Canção do exílio, de Gonçalves Dias, conforme podemos verificar num conjunto de excertos, como o de Oswald de Andrade, Canto do regresso à pátria:

Minha terra tem palmares
Onde gorjeia o mar
Os passarinhos aqui
Não cantam como os de lá
Minha terra tem mais rosas
E quase que mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra (...)
Não permita Deus que eu morra
Sem que eu volte para são Paulo
Sem que eu veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo

Em Canção, Mário Quintana parece fazer um protesto ecológico:

Minha terra não tem palmeiras...
E em vez de um mero sabiá,
Cantam aves invisíveis
Nas palmeiras que não há.

Carlos Drummond, mais filosófico, reflete sobre a distância da felicidade em Nova canção do exílio:

Um sabiá
na palmeira, longe.
Estas aves cantam
um outro canto. (...)
Onde tudo é belo
e fantástico,
só, na noite,
seria feliz.
(Um sabiá,
na palmeira, longe.)

Também Murilo Mendes mostra-se irreverente com o célebre poema romântico:

Minha terra tem macieiras da Califórnia
onde cantam gaturamos de Veneza. (...)
Eu morro sufocado em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas
nossas frutas são mais gostosas
mas custam cem mil réis a dúzia.
Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade
e ouvir um sabiá com certidão de idade!

É, no entanto, de Carlos Drummond uma das mais perfeitas paródias de toda a nossa literatura: Sentimental. Partindo de um conhecido poema de Fagundes Varela, onde o mesmo expressa, com muita propriedade e encanto, a aspiração do amor romântico à eternidade - traduzido na gravação do nome da amada num arbusto - o poeta mineiro vale-se, ao inverso, de letrinhas de sopa de macarrão para registrar o seu afeto. Com isso, não apenas satiriza as grandes paixões do Romantismo, como revela o caráter efêmero de todas as relações de nosso tempo.

Ponho-me a escrever teu nome
com letras de macarrão.
No prato, a sopa esfria, cheia de escamas
e debruçados na mesa todos contemplam
esse romântico trabalho.
Desgraçadamente falta uma letra
Uma letra somente
para acabar teu nome!
– Está sonhando? Olhe que a sopa esfria.
Eu estava sonhando...
E há em todas as consciências este cartaz amarelo:
“Neste país é proibido sonhar.”

Canção do idílio, data vênia',

Freddy Diblú

Minha terra tem carteiras,
Onde canta o jabá;
As rapinas que aqui rodeiam,
Não saqueiam como lá.

Nosso ao léu tem mais estrelas,
Nossas praças têm mais atores,
Nosso zé-povo tem mais lida,
Nessa lida mais “mordedores”.

Em chiar, sozinho, ao açoite,
Mais quelelê encontro eu lá;
Minha terra tem carteiras,
Onde canta o jabá.

Minha terra tem no 171 “doutores”,
Que tais não encontro eu cá;
Em chiar – sozinho, ao açoite –
Mais quelelê encontro eu lá;
Minha terra tem carteiras,
Onde canta o jabá.

Não permita Deus que eu corra,
Sem que me revolte por lá;
Sem que refute os usurpadores
Que não encontro por cá;
Sem qu’inda reviste as carteiras,
Onde canta o jabá.

Esta poesia é inspirada na minha pintura abaixo: “Toda riqueza provém de violência”, de autoria de João Werner
  
Canção do Idílio

Luís Martins

Minha terra tem palmeiras, tem as palmeiras do Mangue,
onde canta o sabiá.
Minha terra tem cassinos, tem mulheres nos cassinos
e as boas que aqui requebram,
não requebram como lá.
Minha terra tem botecos, tem malandros, tem pilantras,
tem samba em caixa de fósforo, Mangueira, Estácio de Sá.
Nosso céu tem mais estrelas e o nosso rádio também.
Nossa vida tem mais vida, mais gostosuras esparsas,
mais preguiça, mais cansaço,
mais volúpia de viver.
Nossos dias têm mais sol, nossas noites mais lugar,
nossas ruas têm mais gente,
nossa gente mais amores.
Minha terra tem idílios, tem passeios de mãos dadas,
adolescentes amando, minha terra tem primores.
De fato, ela tem primores, que tais não encontro cá.
Tem Amélia, grande dama, a vamp, a ingênua, a estenógrafa,
 tem Maria, tem Iná.
Em passear sozinho à noite, mais prazer encontro eu lá.
Minha terra tem o Leme, tem a praia do Flamengo,
Leblon, Jacarepaguá.
Tem a Central do Brasil, onde acontecem desastres, tem cinemas,
tem a Lapa, o estádio do Vasco da Gama, tem subúrbios,
Piedade, Encantado, Engenho Novo, Maria Angu, Irajá.
Não permita Deus que eu morra sem que volte para lá.
Sem que tome cafezinhos, discutindo futebol.
Sem que passeie de ônibus ou de autolotação.
Sem que vá ao Vermelhinho conversar literatura.
Sem que perca na roleta ou que acerte no milhar.
Sem tomar chope na praia, sem tomar pinga no morro,
sem tomar banho de mar.
Minha terra tem palmeiras, na ilha de Paquetá.
Tem barcas da Cantareira, tem anedotas gozadas,
tem noites de bebedeira,
tem ressacas de amargar.


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