segunda-feira, 31 de março de 2014

As dálias do Fregolente



Um dos hábitos dos artistas, sobretudo em peças teatrais, era deixar o script atrás do cenário para decorar as suas falas. O ator (ou atriz) ficava olhando o script até a hora de entrar em cena outra vez, porque a memória também pode ser fotográfica.

Havia também as famosas dálias, nome que foi dado pelo (Ambrósio) Fregolente (1912-1979) para o que geralmente era chamado de “cola”. Era a salvação para os programas ao vivo.

Um dia, Fregolente tinha que fazer uma cena muito grande. Ele era um pai que expulsava a filha de casa, brigava com a mulher, fazia o diabo. Ele tinha aquela cena mais ou menos alinhavada, mas apanhou as folhas do script, cortou e pregou tudo com uma fita adesiva num vaso com dálias que estava em cima da mesa.

Foi se maquiar e se vestir, a peça começou. Fregolente atuava com grande segurança até que, de repente, ficou paralisado de susto: o vaso tinha sido retirado do cenário. A família inteira reunida para ouvir o que ele tinha a dizer, e Fregolente parado, em pânico.

- Maria... eu preciso falar com vocês...

E procurava pelo vaso, cada vez mais atônito.

- O que eu tenho a dizer é sério... muito sério... mas, Maria, onde é que está o vaso de dálias que estava em cima da mesa? Eu quero as dálias, Maria, sem as dálias eu não falo!

* * * * *

Nessa época (anos 60) que se registrou a única parceria entre Olavo Bilac e William Shakespeare.

Montaram Romeu e Julieta, com Paulo Porto fazendo Romeu e Fregolente fazendo o Conde Páris, pretendente de Julieta. Lá pelas tantas, o Conde Páris entrava em cena, sozinho, para um longo monólogo sobre o amor. O pátio de Verona era umas quatro colunas armadas no estúdio. Fregolente tinha pregado o texto inteiro nas colunas, mas enquanto ele vestia a túnica, alguém pintou as colunas. Fregolente entrou em cena, olhou o cenário e parou, petrificado. Ele ali sozinho, as câmeras se aproximando, uma delas pronta para o close, e Fregolente não teve a menor dúvida:

Ora direis, ouvir estrelas!
Certo perdeste o senso...

E foi até o fim no soneto de Olavo Bilac.

Um dia, Fregolente foi obrigado a fazer um comercial da Cinzano. Ele não gostava do comercial, mas não tinha jeito. Devia aparecer envolto num barril com o nome do fabricante e dizer: “Com Cinzano, quero até o barril!” Reclamou a tarde inteira dizendo que era um absurdo ter de fazer aquilo. Mas estava no contrato, não adiantava reclamar.

Fregolente entrou no barril, ensaiou direitinho, até que anunciam: “No ar!” Veio andando, fazendo tudo conforme o combinado, olhou a câmera com muita dignidade e disse: “Com Cinzano, quero até o barril!” E imediatamente, sem dar tempo nem para respirar, emendou: “E vejam a que ponto chega um ator por causa de um contrato mal assinado!”


Fregolente

(Do livro “Antes que me esqueçam”, de Daniel Filho, 
Editora Guanabara)



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