quinta-feira, 12 de março de 2020

A esmola do pobre

Júlio Dinis


Nos toscos degraus da porta
De igreja, rústica, antiga,
Velha, trêmula e mendiga
Implorava compaixão:
Quase um século contado
De atribulada existência,
Ei-la, enferma e na indigência,
Que à piedade estende a mão.

Duas crianças brincavam
À distância, na alameda;
Uma trajada de seda,
Da outra humilde era o trajar:
Uma era rica, outra pobre;
Ambas loiras e formosas,
Nas faces a cor das rosas,
Nos olhos o azul do ar.

A rica, ao deixar os jogos,
Vencida pelo cansaço,
Viu a mendiga  e ao regaço
Uma esmola lhe lançou:
Ela recebe-a e a criança,
Que a socorre compassiva,
Em prece fervente e viva,
Aos anjos encomendou.

De um ligeiro sentimento
De vaidade possuída,
À criança mal vestida
Disse a do rico trajar:
“O prazer de dar esmolas,
A ti e aos teus não é dado;
Pobre como és, coitado!
Aos pobres o que hás-de dar!”

Então a criança pobre,
Sem más sombras de desgosto,
Tendo o sorriso no rosto,
Da igreja se aproximou:
E após, serena, em silêncio,
Ao chegar junto da velha,
Descobrindo-se, ajoelha,
E a magra mão lhe beijou.

E a mendiga alvoroçada,
Ao colo os braços lhe lança,
E beija a pobre criança,
Chorando de comoção!
E assim é que a caridade
Do pobre ao pobre consola;
Nem só da mão sai a esmola,
Sai também do coração.

Janeiro de 1869

(Do livro “Seleta em Prosa e Verso” de Alfredo Clemente Pinto)

Mais de cento e cinquenta anos nos separam deste poema de Júlio Dinis, se olharmos este presente ferido, verificamos que nada foi alterado ao longo dos tempos. Continua a existir a pobreza e a riqueza em que as almas são iguais, o desejo de ser feliz é de igual modo ansiado, será que precisamos de mais cento e cinquenta anos, para que a humanidade tenha mais abertura, para que a igualdade dos povos seja mais justa. A balança da vida é penosa para os mais necessitados enquanto os outros, continuam vestidos de seda.


Joaquim Guilherme Gomes Coelho foi um médico e escritor português. É mais conhecido pelo seu pseudônimo Júlio Dinis.
Nascimento: 14 de novembro de 1839, Porto, Portugal;
Falecimento: 12 de setembro de 1871, Porto, Portugal
Formação: Escola Médico-Cirúrgica do Porto (1861).

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