O homem é menor do que o vírus?
Aqui estamos, outra vez, diante
da nossa infinita pequenez. De repente, um vírus surgido numa cidade distante,
desconhecida até então da maioria de nós, para o nosso mundo, reduz a nossa
velocidade, freia a nossa dinâmica, obriga-nos a recuar para nossos espaços
mais íntimos. Um inimigo invisível impõe toque de recolher ao planeta. Como se
defender dele? A bomba atômica nada pode contra esse poderoso adversário. Os
prêmios Nobel só podem nos mandar lavar bem as mãos. Ninguém está a salvo. Nem
mesmo o homem mais poderoso do mundo. O mercado, entidade onipotente, vê-se
combalido, obrigado a dobrar-se.
Um livro esquecido, “A peste”, do
grande Albert Camus, ressurge do passado para semear reflexão e distrair-nos da
nossa angústia. Os comportamentos tendem a repetir-se ao longo do tempo: fugir,
estocar alimentos, temer o outro, proteger-se do estranho, evitar contato.
Algumas medidas são necessárias. Outras, terríveis, apenas expressam o medo que
se espalha. Por quanto tempo podemos ficar em casa? A indústria do
entretenimento, aparentemente inabalável, cancela os seus eventos. Nada de
Fórmula 1, de Liga dos Campões, de salões de automóvel, de aglomerações de
qualquer ordem. Máscaras e álcool gel desaparecem das prateleiras. Na crise, se
a maioria perde, alguns ganham. O mercado tem sua sobrevida no turbilhão das
piores ameaças.
Sobrevivemos tantas vezes,
pensamos. Sairemos também desta. O terrível é saber que não sabemos onde o
inimigo está. Numa maçaneta? Num corrimão? Sobre uma mesa? Todas as dúvidas
multiplicam-se. Transformados em crianças, tememos esses fantasmas que nos
espreitam. Nos momentos mais tensos, na solidão dos nossos pensamentos ou nas
conversas com os mais próximos, deixamos escapar o grande temor:
– Escaparemos?
Tomadas as providências, acabamos
por pensar que o ocaso, também chamado de sorte, terá de nos proteger. Reflexos
antigos reaparecem querendo reforçar velhos preconceitos. Ouve-se que “chinês é
sujo”. Tenta-se apontar um culpado. Numa época paradoxalmente em que sempre
deve existir um responsável, com o fim da noção de fatalidade, a quem
responsabilizar? A quem reclamar? De quem se queixar? Dizer isso não significa
ignorar a negligência que explica muitos dramas. Ou a desonestidade. O
coronavírus está noutro patamar, o da hiperdimensão. Tudo ganha uma dimensão
incomensurável a partir de um microrganismo. A nossa dimensão de humanos
tentando controlar a natureza também se vê afetada. Descobrimos que nosso
arsenal de conhecimentos é precário.
Só a ciência, porém, pode
salvar-nos. É a corrida pelo remédio e pela vacina. Enquanto as bolsas desabam
e fronteiras são fechadas, cientistas trabalham incansavelmente. Deles depende
o futuro. Em tempos de terraplanismo e de contestação das vacinas, só a ciência
pode realmente estancar o pânico e jugular o vírus. Não avançamos em linha reta
para o fim dos conflitos e dos perigos. Há momentos em que parecemos voltar à
Idade Média. Em alguns aspectos, nunca saímos dela. Talvez o vírus nos deixe
uma lição: somos muito pequenos e frágeis.
Juremir Machado da
Silva,
Correio do Povo,
março de 2020
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