terça-feira, 31 de março de 2020

Duas crônicas de Lunara


Publicado no O Athleta de 24 de outubro de 1886 e assinado Bitu
(um dos pseudônimos de Luiz Nascimento Santos)

É moda


Tudo é moda, até dizer-se o que não se sente e sentir-se o que não se diz.

Não sei quem disse isto; mas quem disse tinha razão.

Uma moça conversando com um rapaz bem desempenado, de fácil verbiagem, dizia-lhe com o ar todo afetado:

− Senhor F… pelo o que o senhor acaba de dizer-me, detesta a maneira exagerada de usarem as modas hoje em dia?…

− Na verdade, minha senhora: e mil vezes bem digo a sorte por ter nascido homem, quando vejo passar-me pela frente essas moças, todas cheias de barbatanas, polvilhos, tintas, algodões e de tantas outras composições, que as francesas têm inventado para fazer do feio belo, do gordo magro, do pardo branco…

− Pois pensa inteiramente como eu… são coisas estas, que não só aborreço como também detesto.

− Pois então somos dois a pensar da mesma forma?!…

− Oh! naturalmente…

− Pois creia minha senhora…

Nisto entra o moleque da casa com um embrulho, e depositando-o sobre uma cadeira, diz todo vitorioso: “nhanhãzinha”, o seu Juca deu a anquinha por um patacão, e mandou dizer pra nhanhãzinha que recebeu daqueles pós que nhanhãzinha…”

− Minha senhora, sente-se incomodada? Está vermelha… o que tem…

− Não é nada, costumo… sim… a enxaqueca…

− Queira receber as minhas despedidas e permita-me vir amanhã, saber de sua apreciável saúde…

− Pois não… quero dizer, queira não incomodar-se…

Saiu o homem… atravessou a rua… quis fazer um cumprimento ainda à moça da anquinha e teve a decepção de ver a sua cabeleira descolar-se do seu caco nu e descrever um semicírculo na sua frente…

Oh! malditas anquinhas*!…

*****

* Anquinhas: pequenas ancas. Almofada ou armação que as mulheres usavam sob a saia, para entufá-la, fazer aumentar de volume, fazer inchar ou inchar-se; atufar(-se).

*Nhanhã: apelido afetuoso de determinadas pessoas. Nhanhãzinha é uma palavra usada com carinho.

Impagabilíssimos chinós!…

Publicado no O Athleta de 14 de julho de 1886 e assinado Sancho
(um dos pseudônimos de Luiz Nascimento Santos*)


No baile do recreio vi-a pela primeira vez, ainda me lembro bem, foi numa quinta-feira. Ela negociava uma caixinha de pós de arroz, com o Gama, na loja do Felizardo. Pisquei-lhe um olho, ela compreendeu.


A negrita que acompanhava a família estava à porta. Dei-lhe um níquel e fiquei logo ciente que Iaiá ia ao baile do Recreio.

Chegara o sábado. O Cosmopolita estava repleto das mais esplêndidas flores do nosso jardim.

Magnífica soirée.

Dançava-se com frenesi.

Fazia as honras da sala o simpático diretor, o roliço Guilherme.

Iaiá lá estava. Cumprimentei-a e tirei-a para uma valsa.

Ressoaram no salão as notas brilhantes de uma composição de Strauss. Cingindo aquela cinturinha breve, quis falar-lhe do meu amor. Pela primeira vez achei-me acanhado e senti que a amava deveras.

Guardar-me-ia para a quinta quadrilha. Armar-me-ia de coragem e estabeleceríamos as bases do nosso casamento.

Passeávamos na sala acalentando eu essa ideia, que me viera tirar de uma crítica posição.

Chega-se a nós, choramingas a morder um esquecido, uma encantadora criancinha. Agarra-se ao vestido da Iaiá, e com a mão esquerda a coçar-lhe o canto da vista repete-lhe três vezes:

– Eu quero ir pra casa, eu tô cum sono.

– Que belo irmãozinho.

– Não tenho irmãos. Este é o meu filhinho mais velho.

Fiquei enfiado e viria para casa sem chapéu se o marido de Iaiá não me dissesse a chacotear.

– O Senhor, vai sem cabeça?!…

*****

(Crônicas transcritas do livro “Lunara Amador 1900”,
de Eneida Serrano)

* Luiz do Nascimento Ramos (Porto Alegre RS 1864 − idem 1937). Fotógrafo e comerciante. Sabe-se que atua em Porto Alegre nas primeiras décadas do século XX, mas não há dados a respeito de sua formação. Começa a trabalhar como guarda-livros, tornando-se mais tarde sócio da firma de importações Franco, Ramos & Cia. Fotógrafo amador, integra a associação Sploro Photo-Club, em Porto Alegre, e registra a periferia da cidade aos domingos. Utiliza o pseudônimo Lunara para expor suas imagens.




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