terça-feira, 31 de março de 2020

Sobre o nome de Porto Alegre

Juremir Machado da Silva


Monumento aos Açorianos

Porto Alegre é a capital de um gauchismo meio ressentido, embora com alguma razão. Nossa capacidade de atualizar a oposição dentro/fora é tão grande que, aos poucos, geramos um novo fosso: Metade Sul/Metade Norte. No passado, a Metade Sul era o Rio Grande. Hoje, essa mesma Metade Sul já se sente excluída, de fora, alijada pela Metade Norte. Trata-se de um estranho fenômeno de um conjunto que ficou só com uma metade. O Rio Grande é como uma espécie rara de mula sem cabeça: a Metade Norte (corpo) chupa o imaginário da Metade Sul (cabeça). Uma produz bens materiais; a outra empresta seus bens simbólicos.

E assim vamos, opondo farroupilhas e imperiais, chimangos e maragatos, federalistas e republicanos, A Reforma e A Federação, positivistas e liberais, gremistas e colorados, petistas e não-petistas, etc. Porto Alegre comporta-se como a donzela a ser conquistada. O general Netto cercou-a até cansar e não conseguiu nada. Os de “fora”, vindos do Interior, dizem que os de “dentro” nunca fizeram nada de especial pela cidade. Alguns desses “estrangeiros” chegam a questionar se existe de fato o porto-alegrense. Os “de cima do muro” acham isso tudo sem importância e tentam ficar à margem dessa polêmica sem fim, o que provoca sérias desconfianças em relação ao caráter desses incapazes de ser opor francamente uns aos outros.

Porto Alegre centraliza um traço gaúcho essencial: aqui, pode-se, em certos casos, até se trocar de mulher ou de homem sem dar explicação. Mas nunca de partido ou de clube de futebol. Aí já é falta de caráter explícita, obscena, pornográfica. O resto é questão pessoal. Porto Alegre é uma cidade unida por uma só paixão: a da oposição. Polarização entre dois termos irreconciliáveis, porém incapazes de viver um sem o outro. O porto-alegrense, altruísta e hospitaleiro, alimenta-se de rivalidade.

Na mitologia sobre o Rio Grande do Sul, alimentada pelo positivismo, costuma-se encontrar a ideia de que por aqui não vicejam as contradições de outras regiões do Brasil. Pode ser. De qualquer maneira, como exemplo, pode-se lembrar que nos inflamados tempos dos positivistas o jornal dos republicanos chamava-se A Federação; o dos federalistas, A Reforma. Os mais célebres cronistas da primeira grande fase intelectual de Porto Alegre - Apolinário Porto Alegre e Aquiles Porto Alegre - nasceram em Rio Grande. Nunca dois “de fora” foram tão “de dentro”.

A mais nefasta influência do positivismo não se esconde de ninguém: está nas ruas de Porto Alegre. Nomes maravilhosos, da fabulação popular, foram substituídos por pomposos títulos militares. A Rua dos Nabos a Doze, homenagem a um sorumbático e encapotado vendedores de dozes nabos por vintém, por exemplo, virou General Bento Martins. Quantos séculos se precisam para que a imaginação popular conceba algo tão extraordinário? Séculos plasmados num segundo de verve, de deboche, de realismo, de genialidade. Tudo isso sacrificado em nome de uma patente: general, marechal, brigadeiro, até tenente, sargento, etc. Daí para baixo já é mais difícil. O Cabo Rocha perdeu sua rua, sob a justificativa de que tinha má fama, como zona do meretrício, para o inimaginável diretor da Faculdade de Medicina, o professor Freitas e Castro.

Rua do Arvoredo, Rua Arroio (que não tinha arroio, assim como a da Praia não tem praia), Beco dos Cordoeiros, Rua dos Nabos a Doze, ruas que fizeram Mário Quintana devanear… As elites apropriaram-se dos espaços mais abertos e populares que podem existir: os logradouros públicos. Porto Alegre não poupou esforços para homenagear muitos dos grandes combatentes das causas do Rio Grande do Sul e dos inimigos das lutas populares. A história, como todos sabem, é sempre escrita pelos vencedores.

Coruja, citado por Sérgio da Costa Franco, já lamentava o avanço dos batalhões de generais, comandantes sem soldados, que pilharam quase todos os louros das vitórias por obra de subordinados a posteriori. A Rua do Arroio, ensinou Coruja, tinha três partes: rua da Praia (até a ponte), também chamada, em referência às moradas das primeiras casinhas do lugar, de rua dos Sete Pecados Mortais; rua da Ponte (até a Igreja); rua do Jogo da Bola, em homenagem a um certo Antonio do jogo da bola, em cujo pátio operários batiam uma bolinha (ver Coruja, 1983 e Franco, 1988). Que beleza! Essas designações foram banidas por coloquiais demais ou por homenagearem desconhecidos, seres anônimos, sem assinatura. Deram lugar a generais anônimos e ainda mais desconhecidos. Quem conhece o brigadeiro honorário (sic) Bento Martins de Menezes?

Paris nunca perdeu ocasião de emplacar seus heróis nas suas ruas e avenidas, mas soube conservar o pitoresco e a imaginação popular em nomes que ainda fazem sonhar: rue du Pas-de-la-Mule; rue du Pot-de-Fer; rue des Acacias; rue des Amandiers; rue de l’Arbre-Sec; rue des Arbustes; rue de l’Arc en Ciel; rue de l’Ave-Maria; rue des Quatre-Vents; rue de la Serpente, des Pendus, rue de l’Avenir (rua do Futuro), etc. Porto Alegre já teve a sua Rua do Porvir, transformada em Intendente Alfredo Azevedo. Estava no fim do bonde da Glória. Veja-se o significado: tomava-se o bonde da Glória para desembarcar no Porvir, na esquina da Avenida Cascata. Acabou a cascatinha. Hoje, o cidadão salta do ônibus e pisoteia um nome insondável e para sempre esquecido: Intendente Azevedo. A glória entrou em decadência. A modernidade usa farda ou terno e gravata.

Quando alguém dá de cara com um nome do tipo “Antônio do Jogo da Bola” é inevitável a curiosidade: quem terá sido? Em que época terá vivido? Como terá morrido? Diante da placa fria e clara, General Bento Martins, o interesse nem chega a existir. Um general, nada mais que um general… Os “de dentro”, em geral vindos de fora, que se tornaram nomes de rua, portanto incrustados na carne de Porto Alegre, estão cada vez mais alijados do imaginário dos moradores da cidade. Porto Alegre precisaria de uma rua que se chamasse Portalegre, ou um beco intitulado “Oficial inglês assassinado”. Bastaria, quem sabe, uma Avenida de Los Hermanos. Ou um bulevar de Saudade Alentejana.


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