sexta-feira, 27 de março de 2020

Um homem virulento

O discurso que liquidou uma carreira política

Eduardo Bueno


Foi um pronunciamento desastroso. Veio na contramão da ciência, afrontou o bom senso, atacou a imprensa, menosprezou a pandemia − e, é claro, ofendeu a inteligência dos ouvintes. Só poderia marcar o início do fim e a morte política do sujeito que, mesmo em meio à gravíssima crise de saúde pública, fora capaz de pronunciar palavras tão despropositadas. Até quem não desconhecia o despreparo e o destempero do chefe surpreendeu-se com mais aquela demonstração pública de estupidez.

Tão logo terminou o pronunciamento, as notícias se espalharam com a rapidez do vírus e o povo foi às janelas bater panelas, exigindo o afastamento daquela criatura. Uma semana ainda se passaria, mas ao raiar do sétimo dia, ele enfim caiu.

Aconteceu de verdade, e foi assim. Na esteira da Primeira Guerra Mundial, a gripe espanhola disseminou-se com ferocidade letal pelo planeta. O vírus chegou ao Brasil a bordo do navio inglês S.S. Demerara, que, após escala no Recife, aportou no Rio de Janeiro em 21 de setembro de 1918. Em uma semana, já eram mais de mil os infectados. Então, no dia 10 de outubro, com o caos e o pânico se alastrando pela capital federal, o diretor-geral de Saúde Pública − o ministro da saúde nos dias de hoje − convocou a comunidade médica e a imprensa para um pronunciamento na Academia Nacional de Medicina.

Para surpresa geral, pôs-se a defender a “benignidade da gripe”. Disse, com todas as letras: “Trata-se de influenza pura e simples, e não influenza espanhola”. Ou seja: uma gripezinha. Os cientistas se arrepiaram. Mas ele prosseguiu: “Os sensacionalistas da imprensa, em seu vil afã de vender jornais, amplifica o pânico irresponsavelmente”. Mas e as 20 mil pessoas já contaminadas só no Rio? “Números infundados, sem comprovação”, disse Seidl. Mas, insistiu um repórter, quanto ao fato de ele, Seidl, ter requisitado a única lancha da capitania para que “um seu amigo retirasse pessoas de suas amizade do vapor Itassucê”, que aportara na Guanabara “antes que os inspetores da Profilaxia dos Portos pudessem expurgar o navio e isolar os doentes?” Foi a gota d′água. Seidl encerrou o encontro e deixou a Academia.

Em 17 de outubro de 1918, atendendo ao “clamor popular, à indignação da classe médica e aos alertas da imprensa”, o presidente Venceslau Brás chamou Carlos Seidl ao Palácio do Catete e o demitiu. Antes de retirar-se para submergir na história nacional da infâmia, Carlos Pinto Seidl fez um último alerta ao presidente: “A melhor forma de combater essa epidemia no Brasil é fazer calar a imprensa sensacionalista”.

Um homem virulento, resgatado agora da lata de lixo da História, para onde em breve voltará. Quem sabe se não em má companhia.

(Do jornal Zero Hora, março de 2020)


Carlos Pinto Seidl nasceu no dia 24 de novembro de 1867, em Belém, no Estado do Pará. Faleceu na cidade do Rio de Janeiro, no dia 19 de outubro de 1929.

P.S. A demissão do Dr. Carlos Pinto Seidl, diretor-geral da Saúde Pública, em razão da forte rejeição ao seu entendimento de ser a pandemia, uma “doença benigna” sendo equivalente a uma gripe, que todo mundo conhece e para a qual não havia qualquer medida profilática para ser tomada.

Essa tese, defendida e aplicada por ele, foi rejeitada, amplamente, na sessão de outubro de 1918 da Academia de Medicina. Sendo que a essa tese somou-se o fato que o Governo Federal tomava, lentamente, as medidas necessárias e aplicava recursos tardiamente, muito, provavelmente, ainda encapsulado pela campanha de Oswaldo Cruz e a revolta da vacina. Mas, frente a uma situação dramática e sem controle, em 22 de outubro de 1918 Carlos Pinto Seidl é exonerado e assume o cargo de Diretor Geral de Saúde Pública o Dr. Carlos Ribeiro Justiniano Chagas, essa é outra história.


Nenhum comentário:

Postar um comentário