segunda-feira, 16 de março de 2020

Os dois meninos

Coelho Neto


Ia um menino por uma estrada, cantando como os passarinhos que voavam de ramo em ramo, quando ouviu uma voz que chamava:

− Menino loiro que ides passando ao sol com tamanha pres­sa, por que não descansais? Vinde aqui um instante: tenho mel e bolos de farinha, e leite e dar-vos-ei tanto ouro quanto possa conter a bolsa que sobraçais.

− Eu vos agradeço, disse o me­nino loiro, mas, como as horas voam e já soou a sineta, não me posso de­ter um só instante.

− E aonde vos levam passos tão ligeiros?

− À escola.

− Bem feliz sou eu que vivo sobre moedas de ouro neste palácio de colunas de prata, cercado de gozos. Que me importa saber como nasce a planta, por que brilha a estrela, e o que houve dantes que me importa? Sei que tenho tesouros, escravos, lei­tos fofos de penas onde me estiro preguiçosamente... que me importa o mais? Vais trabalhar tanto!… tenho pena de ti.

Anos depois, já moço, tornava o menino loiro a casa de seus pais, quando, ao passar no antigo sítio onde outrora avultava o palácio, lembrou-se do menino que o chamara e pôs-se a procurar os muros fortes, mas só via urtigas e ruínas, erva brava e escom­bros e uma voz saiu dentre as ruínas:


− Esmola a um pobrezinho pelo amor de Deus! O moço loi­ro deu então com um homem alquebrado e envelhecido que estendia a mão trêmula. Caridosamente deu uma moeda ao pobre e lem­brou-se de perguntar pelo palácio que ali houvera em tempos.

− Ah! meu senhor, suspirou o infeliz. Quem o visse tão forte nas suas bases de granito e de mármore, não o julgaria tão fraco. Levaram-no as águas tumultuosas do rio num inverno, e todo o tesouro, que era grande, foi-se águas abaixo.

− E o menino que nele vivia, que é feito dele?

− Aqui o tendes, senhor, nesta miséria que vedes, sou eu mesmo. Vivo de esmolas, porque nada tenho e nada sei. Tudo quanto eu valia as águas levaram.

O moço loiro, ouvindo esses lamentos do infeliz, agradeceu no coração os cuidados paternos e bendisse as noites que passara debruçado à mesa dos estudos; caminhando dizia:

− Ah! a fortuna que eu trago acumulada na cabeça, não a roubarão ladrões, não a levarão torrentes, porque as suas bases são mais fortes de que o granito e o mármore. Pobre menino do palácio de ouro!

(Do livro “Seleta em Prosa e Verso”,
de Alfredo Clemente Pinto*)

* Alfredo Clemente Pinto (Porto Alegre, 18541938) foi um educador, escritor e político brasileiro.

Filho do português Clemente José Pinto, teve 11 irmãos e foi o escolhido da família para dedicar-se à Igreja, mas como não era sua vocação, após dois anos, doente dos pulmões, conseguiu a autorização paterna para abandonar a Igreja. Tornou-se educador, dedicando mais de 40 anos de sua vida ao magistério.

Foi eleito deputado estadual, à 21ª Legislatura da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, de 1891 a 1895.

É autor de uma famosa obra didática, utilizada por longos anos nas escolas gaúchas, intitulada Seleta em Prosa e Verso. Também traduziu para o português a obra de Ambrósio Schupp, Os Muckers − Episódio Histórico Ocorrido Nas Colônias Alemãs do Rio Grande do Sul, sobre a revolta dos Muckers.


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