Detetive Milton Le Cocq de Oliveira
Le Cocq estava para Perpétuo assim
como Cara de Cavalo estava para Mineirinho - os quatro mobilizaram o
imaginário da época. Mitificados pela polícia, amplificados pela imprensa e
admirados nos morros, eles disputaram entre si o papel de mito. Os quatro
morreram em “combate”, comovendo a cidade.
À esquerda, Perpétuo prendendo dois marginais
Perpétuo era um caçador; Le Cocq, um
matador. “Perpétuo prendeu bandido sem dar um tiro”, dizia o repórter Octávio Ribeiro.
Trabalhava com informantes, os “cachorrinhos”. Com Le Cocq era
diferente. “Chegava com a turma, cercava o barraco e se houvesse a mínima
resistência, ia atirando.” Segundo Octávio, Perpétuo foi “um dos primeiros
policiais a reconhecer o poder da imprensa”.
Milton Le Cocq de Oliveira, por suas
ações e ensinamentos, ficou na memória da polícia carioca como paradigma. Em sua
homenagem foi criada a Scuderie Le Cocq,
tendo como símbolo uma caveira com duas tíbias e entre seus sócios os
remanescentes dos Homens de Ouro, muitos dos quais ocupando até hoje cargos
importantes na polícia carioca.
O detetive tinha estratégia e
pedagogia próprias. Ao contrário de seu rival, detestava publicidade. Mas os
dois supunham-se heróis ao enfrentar o crime. Sem recursos técnicos, procuravam
sobrepujar com astúcia o adversário. Dos dois restaram mais lendas que
biografias.
Uma das lendas sobre Perpétuo conta
que fazia muito calor quando ele resolveu subir o morro da Mangueira para rever
os amigos e tomar umas cervejas, como fazia sempre. Além dos amigos, ele tinha
ali muitos informantes. Estava numa tendinha conversando quando apareceu
Silvino Celestino.
- Quem
é o tal de Perpétuo aí?
Quem estava engolindo a bebida
engasgou; quem tinha o copo na mão tremeu; o dono da birosca congelou o gesto
de limpar o balcão. Só Perpétuo permaneceu calmo. Deu um passo à frente e se
apresentou:
- Tá
falando com ele.
-
Então vai logo rezando, Índio, que você vai morrer.
E Silvino deu um passo para trás,
saindo de costas do bar, com a arma na mão, chamando seu alvo para fora. Dizem
que Perpétuo deu uma risada e seguiu o bandido. Silvino apontou a arma e deu
dois tiros, algumas testemunhas contaram três. Nenhum pegou. Silvino não
acreditava no que via, ficou paralisado: Perpétuo se aproximando dele,
tomando-lhe a arma, prendendo-o. A notícia primeiro se espalhou pelo morro, de
boca em boca: o detetive Perpétuo Freitas tinha o corpo fechado.
Mas para conquistar a cidade era
preciso mais do que uma lenda, e o momento histórico do detetive veio em 1950,
quando prendeu sem dar um tiro o lendário Mauro Guerra, que estava
aterrorizando a população.
Perpétuo se preocupava com a imagem.
Quase sempre de terno de linho branco, moreno como um índio, alto e forte, ele costumava
subir os morros disfarçado: às vezes era um simples favelado, sujo e
malvestido; às vezes, um bandido, com um baralho no bolso da calça e um cigarro
de maconha na orelha. Foi quando conversava com um personagem assim, que ele
pensava ser um favelado, que Mauro Guerra recebeu ordem de prisão.
Perpétuo descendo o morro com mais um marginal preso
Quatro anos antes, em 1946, Perpétuo
já tinha prendido Zé Navalhada, Sombra e Bate-Papo, este último um perigoso assaltante
que, ao esticar a mão para cumprimentar quem julgava ser um comparsa, teve o
pulso grampeado por uma algema do detetive.
Na sua folha corrida ficaram
registradas apenas duas mortes, apesar de sua reputação de bom atirador. A de
Bidá e a de Fogueirinha. Bidá, que costumava enfrentar a polícia à bala, tentou
puxar o revólver ao receber voz de prisão do detetive. Caiu morto na porta de
um barraco no morro do Querosene. Fogueirinha teve o mesmo fim em situação
idêntica. Não conseguiu puxar o gatilho.
Perpétuo realizou proezas em quase
todos os morros do Rio. No Tuiuti, prendeu Passo Errado, em 54, e Bocage, em
55. Muitos anos antes, em 49, já havia agarrado Zé Pretinho. Charuto, muito
perigoso, entregou-se chorando no morro dos Macacos. No morro de Santo Antônio,
em 57, foi a vez do terror Montanha. Perpétuo desmontou-o sem dar um tiro. João
Cotu, também com fama de valente, levou um susto quando viu Perpétuo sair de
trás de um poste. Não ofereceu resistência.
Le Cocq andava de lambreta. Deixava-a
ao pé do morro e fazia a escalada carregando uma arma e um binóculo. Passava horas
na espreita. “Nunca se deve arrombar uma porta de barraco deixando o peito à
mostra”, dizia, e essas obviedades ficaram como ensinamentos e exemplos de
sabedoria policial. “Deve-se deitar e dar um pontapé na porta. Também é bom
mandar o bandido acender a luz e sair com as mãos na cabeça”, era outra lição.
O primarismo tático pressupunha evidentemente métodos ingênuos do adversário.
O bandido Cara de Cavalo
Le Cocq começou a morrer no dia em
que um bicheiro o procurou para pedir providências contra Cara de Cavalo. Ele reclamava
de extorsão exagerada. A cena parecia moderna: um contraventor se dirigia a um
policial para denunciar um bandido por se apoderar de uma parte dos lucros de
seus negócios clandestinos.
Le Cocq resolveu agir logo e armou o
cerco. Não foi difícil. A hora de trabalho do bandido, os pontos de bicho que
frequentava, enfim, seus hábitos diários eram conhecidos. Afinal, ele era um
bandido burocrático. Na noite de 27 de agosto de1964, Lair estava recebendo a
féria quando percebeu a armadilha. Voltou correndo para o táxi de placa
40-17-94 e fugiram em disparada.
Nesse dia, Le Cocq não estava de
lambreta, mas de carro, em companhia dos parceiros Jacaré e Cartola e de um
jovem policial em começo de carreira, Hélio Vígio, todos da Delegacia de
Vigilância e Capturas. A perseguição foi rápida. Embora o fusca fosse de Vígio,
quem dirigia era Cartola. Na esquinada rua Emilia Sampaio com Teodoro da Silva,
em Vila Isabel ,
o carro de Le Cocq conseguiu fechar o táxi. Houve um rápido tiroteio. Le Cocq
tombou morto com um tiro da Colt 45 de Cara de Cavalo.
Esse tiro atingiu também o
amor-próprio da corporação. O mocinho perdeu o duelo para um bandido
pé-de-chinelo. Uma morte sem glória. Na verdade, Milton Le Cocq de Oliveira, o Gringo,
aclamado como paradigma e mito da polícia carioca, merecia uma morte mais
digna. Ele não tombou cumprindo um mandado judicial, nem uma ordem policial.
Sua última missão foi um mandado do jogo do bicho.
Ao matar o lendário detetive, Cara de
Cavalo decretou sua sentença de morte. Em poucos minutos, deixou de ser um
reles explorador de mulheres e achacador de bicheiros, feio e pobre, com a cara
que lhe deu o merecido apelido, para se transformar num formidável bandido.
Todos os companheiros de Le Cocq
nesse dia se lembraram da lição do mestre: “O bandido que atira num policial
não deve viver”.
A perseguição a Cara de Cavalo foi
uma das maiores caçadas que o Rio conheceu. Cerca de 2 mil homens de todas as delegacias
e divisões da Secretaria de Segurança foram mobilizados para a operação,
comandada pelo delegado Sérgio Rodrigues. Quatro estados participaram da
perseguição. A polícia ficou desorientada. A sede de vingança lhe tirou o faro.
Houve mortes de pessoas parecidas com Cara de Cavalo, houve brigas entre
policiais, muita disputa e rivalidade.
Foi durante essa caçada que Perpétuo
morreu, também deforma inglória. Ele achava que ia prender Cara de Cavalo vivo.
Desentendeu-se com um jovem colega, Jorge Galante Gomes, esbofeteou-o e recebeu
um tiro nas costas. A cruzada em busca do bandido se explicava pelo desejo de
vendeta de uma classe ofendida. Mas também porque havia um grande prêmio em dinheiro
pela cabeça de Cara de Cavalo.
Um mês e sete dias depois, Cara de Cavalo
foi apanhado nos arredores de Cabo Frio, na estrada para o balneário de Búzios.
Vestia uma calça e uma camisa furrecas e arrastava uma sandália japonesa. Sem
carro, que ele nunca teve, sem dinheiro para uma longa corrida de táxi, o
criminoso mais procurado do país pegou um ônibus em Caxias até o Rio e daí um
trem até Cabo Frio.
Eram quatro e meia da madrugada de 3
de outubro de 1964, quando a turma da pesada - Sivuca, Euclides Nascimento, Guaíba,
Luiz Mariano, Cartola, Jacaré, Hélio Vígio, entre outros - atacou o
esconderijo.
“Fui eu que matei ele”, garante Luiz
Mariano trinta anos depois. Ele é o titular da delegacia de Vila Isabel,
próximo de onde Le Cocq morreu, e presidente da Scuderie Le Cocq. “Na hora que
Cara de Cavalo se levantou”, recorda Mariano, “eu dei a rajada que arrancou o
dedo dele fora. Ele caiu com a mão pra cima”.
Junto com os policiais estava Nílton
Luís, filho do dono da casa. Preso na semana anterior por tráfico de maconha,
ele foi, segundo a polícia de Cabo Frio, quem conduziu os assassinos ao
esconderijo do marginal.
Em seu depoimento, o delegado Sérgio
Rodrigues disse que teria proposto por duas vezes que Cara de Cavalo se
rendesse. Só depois da negativa, iniciara a fuzilaria. Quatro jornalistas que,
a convite, acompanharam a execução, confirmaram a versão. Evanilda, a filha do
dono da casa, e Nisa, a amante de Cara de Cavalo, desmentiram. Elas, que haviam
assistido à execução, afirmaram ao delegado Jorge Breta, de Cabo Frio, que o
bandido morreu sem reagir. “Ele ainda chegou a se levantar”, disse Evanilda, “mas
logo caiu no chão sem alcançar a arma que deixara sobre um móvel.”
Segundo o laudo pericial, dos cem
tiros disparados contra Cara de Cavalo, 52 atingiram seu corpo, 25 se alojando
na região do estômago.
Outro participante da operação - o
delegado Sivuca, que seria eleito deputado estadual com a plataforma “Bandido
bom é bandido morto” - contaria mais tarde com prazer: “Então todo mundo atirou
no bandido. Mais de cem tiros. O umbigo do cara ficou colado na parede”.
Zuenir Carlos Ventura (Além Paraíba,
1° de junho de 1931) é um jornalista
e escritor
brasileiro.
É colunista
do jornal
O Globo.
Ganhou o Prêmio Jabuti em 1995, na categoria reportagem,
pelo livro Cidade Partida. Seu livro 1968: o Ano que Não Terminou serviu de
inspiração para a minissérie Anos Rebeldes, produzida pela Rede Globo.
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