quinta-feira, 4 de abril de 2019

As quatorze cancelas



– Vamo cravá bem esse moirão “seu” Pindunga, porque ele vai serví pra escorá a retranca da porteira!… – Advertiu Florêncio, enquanto os aramadores seguiam o serviço, alinhando os postes para a cerca que dividiria a invernada grande do Lageado, em dois potreiros de cinco quadras, mais ou menos, cada um.

Candinho Bicharedo, a um lado, falquejava a cabeça dos moirões, arredondando-as, de maneira que a água das chuvas tivessem mais dificuldade para penetrar nas gretas da madeira, dando assim mais durabilidade aos postes.

Para trás, o resto da turma de aramadores: uns furando as tramas, outros, mais na falda da coxilha, enfiando o arame e esticando-o, enfim cada qual no seu serviço especializado, dando sequência ao aramado que já se estendia na direção do mato.

O serviço desenrolava-se normalmente, dentro da rotina, quando uma pancada metálica feriu o ar calmo daquela manhã de maio, anunciando a hora do almoço.

No acampamento, onde uma carroça de duas rodas, com o varal para cima, e três couros vacuns, formavam o abrigo da turma. Zico andava de um lado para outro, ultimando os preparativos para servir a comida àquela gente, que como de costume, chegaria com bom apetite.

O gado que pastava nas proximidades, ouvindo o ruído metálico produzido por um golpe em uma porteira de arado, presa ao recavém da carroça, começou a retouçar, aproximando-se curioso do acampamento, onde uma fumaça branquicenta denunciava o fogão dos aramadores.

A água para o chimarrão já estava quente e a cuia encostada a um tição de fogo, esperava que as mãos calosas daqueles gaúchos viessem acariciá-la, na avidez de saborearem uns dois ou três amargos antes do almoço.

– O patrão resolveu mudar o lugar da porteira, “seu” Florêncio?… – perguntou Candinho Bicharedo, enquanto, sentado sobre o calcanhar direito, enchia a cuia com a água da “chicolateira” que fervia encostada ao fogo.

Florêncio, o capataz da turma de aramadores, ficou olhando para Candinho, por alguns instantes, como quem está tomando uma resolução, depois respondeu:

– É, o homem resolveu fazê a porteira bem no topo da coxilha!… Quer uma porteira e uma cancela de volta, bem reforçadas!… Coisa que essa zebuada não vá rebentá em seguida.

E, sacudindo a cabeça na direção de Candinho, Florêncio continuou:

– O senhor que é prático desse serviço, podia se encarregá de fazê a vontade do patrão. – rematando – não poupe material; escolha o madeirame e faça tudo de arame preto torcido e bem reforçado!…

Candinho Bicharedo escutou a ordem, enquanto sua imaginação retouçava, satisfeito com a confiança que o capataz depositava em seus conhecimentos como aramador.

– Pode deixá, no mas!… “seu” Florêncio… que le garanto que animal nenhum derruba a porteira e a cancela que vou fazê!…

– Vai sê daquelas que não se abre a encontro de cavalo, “seu” Candinho?… – perguntou Maurício que chegara, havia instantes, com um rolo de arame à meia espalda.

Foi a conta, o velho contista abaralhou no ar a deixa e:

– Vacê até me faz lembrá duma que se passou comigo, com essas cancelinha choégua, que mais parecem brinquedo de criança – acrescentando para confirmar a confiança do capataz – cancela a porteira que eu faço, se uma tropa enveredá direito a elas, pode deitá todo o aramado, mas elas ficam de pé!… Ah, que ficam, ficam!!…

– Mas então as cancelas que vacê faz são bem aturunadas… – comentou Zico, enquanto com o “cucharrão” de pau, provava a cangica com carne de ovelha, que fervia no panelão de ferro.

– Eu até les vou contá porque tenho quizília de cancelinhas mal feitas!… Certa ocasião, o mano Bica adoeceu duma doença braba, que ninguém conhecia e o “seu” Tunico, que era quem dava remédio lá em casa, me chamou à parte e me disse: “Óia, Candinho, tu pega o teu tobiano e dá uma disparada no povo, pra consultá um doutor de lá, porque o que eu podia fazê pelo teu ermão, já fiz e na marcha que ele vai não aguenta mais do que dois ou três dias.”

Não contei tempo, seus!… Encilhei o tobiano, já ao escurecersito e me larguei na estrada!… Pra incurtá o caminho, peguei pelo costado da linha do telégrafo, que era mais direito e não tinha porteira pra abri, era só ir cruzando as cancelinhas que tem em cada aramado!… Afrouxei a rédea do animal e deixei que seguisse num disparadão no mas!… atendendo só o fio do telégrafo, pra não me perdê!… De vez em quando eu sentia aquele sogaço que o matungo levava!… Mas seguia adiante!… Quando vinha apontando as barras do dia, comecei a notá que o meu cavalo, que era muito escarceador, vinha atirando o freio com dificuldade… Pensei que fosse de cansado!… E segui meta e meta!… Com a pressa de chegá na casa do doutor, não atinava pra nada!…

Os aramadores já se haviam reunido em volta do fogão para aprecisar mais aquela tirada do célebre Candinho Bicharedo, e seguiam atentos o desenrolar daquele conto, para poderem repetir em outros rodas a gauchada do velho contista, enquanto este continuava:

– Pois óie, seu!… para le incurtá o causo!… Quando eu ia entrando na Uruguaiana, já dia claro, foi que me dei conta, seus!… As quatorze cancelas que tem do Ibirocai até a cidade, vinham enfiadas no pescoço do tobiano velho!… O sagaço que eu sentia de vez em quando, era o animal que metia o encontro nas cancelinhas do telégrafo e seguia adiante, no mas!… sempre naquele galopão!… Como não ia abaralhará o freio com dificuldade o pobre do tobiano velho, com aquelas quatorze cancelas enfiadas no pescoço!… Até que o animal aguentou muito!… Já vê que eu tenho motivo pra tê quizília de cancelinhas mal feitas; o “seu” Florêncio pode deixá que a porteira que eu vou fazê não há perigo de se abri a encontro de matungo!…


Do livro “Gauchadas do Candinho Bicharedo”, de Urbano Lago Villela*


*Jornalista, Escritor e Poeta uruguaianense, Urbano Lago Villela, último à direita da foto acima, escreveu 8 livros entre poesias, causos gauchescos e biografias como a de “Domingos de Almeida” e a obra de maior repercussão, “Uruguaiana Atalaia da Pátria”.

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