segunda-feira, 8 de abril de 2019

Textos de José Gomes Ferreira


Devia morrer-se de outra maneira
  
Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: “Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio”.
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir
a despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
“Adeus! Adeus!”
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão sutil... tão pólen...
como aquela nuvem além (veem?) − nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis...

*****

Ninguém me vê do mesmo modo. Para alguns sou águia, para muitos burro; para este um camelo: e para quase todos um animal indefinido. Cada qual agarra em mim a realidade que mais lhe convém.

(...)

Só nunca fui uma coisa: Eu próprio. Mas esse é um dos muitos segredos que hei-de levar para a sepultura.


José Gomes Ferreira foi um escritor e poeta português, nasceu a 09 Junho 1900 (Porto, Portugal); morreu em 08 Fevereiro 1985.

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