Ouça, paisano, são os sinos da
catedral mais xucra do pago! A que foi erguida com pedras mouras, fé e esperança,
cujas ruínas ainda estão lá, há mais de 300 anos ao relento. Escute, eles estão
repicando, tonitruando pelos coxilhões verdejantes, pelo céu azul deste fim de
tarde. Eles não param nunca. Nunca. A majestosa catedral missioneira foi
devastada, saqueada, vilipendiada, mas se manteve em pé, impávida a nos dizer
que devemos resistir, não nos achincalhar perante as potências estrangeiras.
Perdemos muitas batalhas para o monstruoso exército de duas potências (mais os
sanguinário aqui contratados), que dizimou nosso povo que vivia de forma livre,
sem propriedade privada. Era isso que causava temor aos invasores. Levante e
olhe, paisano, está vendo? Não é linda demais nossa querida e altaneira
Catedral de São Miguel Arcanjo?
Veja, firme bem a vista, as grandes
pedras quadradas retiradas do rio e trazidas de padiola ainda estão firmes,
sustentando o tempo, a memória e a nossa identidade. Que coisa, paisano, saber
que descendentes de imigrantes europeus se dizem hoje missioneiros, pela posse
da terra que ganharam de mão beijada dos tiranos colonizadores, e os
verdadeiros donos da terra morrendo à míngua, vendendo artesanato sentados no
atual sítio arqueológico, mirando com olhos rasos dʼágua o sagrado altar de
seus antepassados. Por quê? Por quê? É possível tamanha humilhação aos guaranis
depois de tudo o que lhes foi imposto? Não bastaram as ponchadas de sangue
derramadas daquelas gargantas afinadas que cantavam nos corais, as mãos decepadas
dos tocadores de violinos e de flautas, dos moldadores do barro vermelho que se
transformava em lindas esculturas? Aquelas mãos hábeis que moldavam a madeira
bruta em magníficas imagens barrocas foram cortadas, arrancadas dos braços e a
carne ficou exposta ao sol, apodrecendo e servindo de comida aos bichos
carniceiros. As mesmas mãos e braços que amansavam bois e faziam gemer a terra,
fabricavam pães, mãos que tiravam leite e faziam revigorar as sete cidades de
sete ruas.
Eles, os imperialistas, tiveram medo,
paisano! Não suportaram ver tanta fartura, riqueza, o gado se reproduzindo aos
milhares pelos campos, a terneirada nascendo pelas macegas, o trigo e o linho
florescendo nas Missões. Na Europa, corria o boato de que os índios missioneiros
e os jesuítas iriam fundar uma nova nação, eles que seguiam fielmente as ordens
de Espanha. Então, covardemente, esses lusos e espanhóis os mataram. Não foi
nem combate, foi um massacre, um assassinato grandioso e coletivo.
Ah, paisano, ajude-me a mirar para
esta velha redução. Esse passado imenso pesa nos ombros e sinto-me tão pequeno.
Contemple e reze, trançando os dedos, uma prece para que nunca haja outro
genocídio. Vamos pedir perdão aos bravos de Sepé* que tombaram em Caiboaté de
lança firme na mão, sem pedir clemência. Benditos sejam todos os filhos de
Tiaraju, o guarani de lunar na testa que foi mitificado depois de ter o corpo
transpassado pela lança de Portugal e pelo tiro de Espanha. Esta catedral será
sempre um símbolo contra a prepotência. A cruz de dois braços suplica para que
sigamos defendendo esta terra e este legado até o fim de nossos dias...
(Na coluna
Campereada, por Paulo Mendes,
Correio do Povo, abril de 2019)
Correio do Povo, abril de 2019)
* Sepé tombou num dia sete de
fevereiro de 1756, numa batalha às margens da sanga da Bica, um afluente do rio
Vacacaí, no município gaúcho de São Gabriel. Com sua morte, perdidos da mais
importante liderança, os Guarani acabaram derrotados, sendo mortos às centenas,
junto com vários padres, tanto pelos luso-brasileiros como pelos espanhóis.
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