sábado, 27 de abril de 2019

A Catedral Missioneira



Ouça, paisano, são os sinos da catedral mais xucra do pago! A que foi erguida com pedras mouras, fé e esperança, cujas ruínas ainda estão lá, há mais de 300 anos ao relento. Escute, eles estão repicando, tonitruando pelos coxilhões verdejantes, pelo céu azul deste fim de tarde. Eles não param nunca. Nunca. A majestosa catedral missioneira foi devastada, saqueada, vilipendiada, mas se manteve em pé, impávida a nos dizer que devemos resistir, não nos achincalhar perante as potências estrangeiras. Perdemos muitas batalhas para o monstruoso exército de duas potências (mais os sanguinário aqui contratados), que dizimou nosso povo que vivia de forma livre, sem propriedade privada. Era isso que causava temor aos invasores. Levante e olhe, paisano, está vendo? Não é linda demais nossa querida e altaneira Catedral de São Miguel Arcanjo?

Veja, firme bem a vista, as grandes pedras quadradas retiradas do rio e trazidas de padiola ainda estão firmes, sustentando o tempo, a memória e a nossa identidade. Que coisa, paisano, saber que descendentes de imigrantes europeus se dizem hoje missioneiros, pela posse da terra que ganharam de mão beijada dos tiranos colonizadores, e os verdadeiros donos da terra morrendo à míngua, vendendo artesanato sentados no atual sítio arqueológico, mirando com olhos rasos dʼágua o sagrado altar de seus antepassados. Por quê? Por quê? É possível tamanha humilhação aos guaranis depois de tudo o que lhes foi imposto? Não bastaram as ponchadas de sangue derramadas daquelas gargantas afinadas que cantavam nos corais, as mãos decepadas dos tocadores de violinos e de flautas, dos moldadores do barro vermelho que se transformava em lindas esculturas? Aquelas mãos hábeis que moldavam a madeira bruta em magníficas imagens barrocas foram cortadas, arrancadas dos braços e a carne ficou exposta ao sol, apodrecendo e servindo de comida aos bichos carniceiros. As mesmas mãos e braços que amansavam bois e faziam gemer a terra, fabricavam pães, mãos que tiravam leite e faziam revigorar as sete cidades de sete ruas.

Eles, os imperialistas, tiveram medo, paisano! Não suportaram ver tanta fartura, riqueza, o gado se reproduzindo aos milhares pelos campos, a terneirada nascendo pelas macegas, o trigo e o linho florescendo nas Missões. Na Europa, corria o boato de que os índios missioneiros e os jesuítas iriam fundar uma nova nação, eles que seguiam fielmente as ordens de Espanha. Então, covardemente, esses lusos e espanhóis os mataram. Não foi nem combate, foi um massacre, um assassinato grandioso e coletivo.

Ah, paisano, ajude-me a mirar para esta velha redução. Esse passado imenso pesa nos ombros e sinto-me tão pequeno. Contemple e reze, trançando os dedos, uma prece para que nunca haja outro genocídio. Vamos pedir perdão aos bravos de Sepé* que tombaram em Caiboaté de lança firme na mão, sem pedir clemência. Benditos sejam todos os filhos de Tiaraju, o guarani de lunar na testa que foi mitificado depois de ter o corpo transpassado pela lança de Portugal e pelo tiro de Espanha. Esta catedral será sempre um símbolo contra a prepotência. A cruz de dois braços suplica para que sigamos defendendo esta terra e este legado até o fim de nossos dias...

(Na coluna Campereada, por Paulo Mendes,
Correio do Povo, abril de 2019)


Sepé tombou num dia sete de fevereiro de 1756, numa batalha às margens da sanga da Bica, um afluente do rio Vacacaí, no município gaúcho de São Gabriel. Com sua morte, perdidos da mais importante liderança, os Guarani acabaram derrotados, sendo mortos às centenas, junto com vários padres, tanto pelos luso-brasileiros como pelos espanhóis.


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