Marcello Campos
Ilhota, vista aérea
(no quadrado central superior)
(no quadrado central superior)
Esses moços, pobres moços... Não foi
por acaso que se batizou de “Ilhota” a vila surgida em 1905 com a recanalização
dos arroios Dilúvio e Cascatinha pela Intendência Municipal. O terreno atolado
entre os bairros Cidade Baixa, Azenha e Menino Deus parecia mesmo um a ilha
geográfica e social, rodeada de água, assediada pelas enchentes, coberta de
barro, apartada pelo preconceito. Humilde e marginalizada mas também religiosa,
musical e festeira, com seus trabalhadores, malandros, seresteiros e boêmios
pisando sobre tábuas. Uma área onde os encurralados pelo transbordo não
hesitavam em pedir socorro disparando revólveres para o céu. Foi em meio a esse
colorido cinzento que se forjaria a personalidade de Lupicínio Rodrigues,
nascido pelas mãos da parteira-benzedeira Júlia “Dona Quimbá” Garcia às 21h30min
de quarta-feira, 16 de setembro de 1914. Endereço: Travessa Batista nº 79 (uma
via sem saída), em um terreno estreito e comprido − 13m X 57m − de casa simples
de alvenaria com sótão, galpão lateral e pátio espaçoso com fundos para um dos
braços de arroio, configuração semelhante a dezenas de outras na região.
Quando os planos oficiais apressaram
as obras que novamente redesenhariam tais cursos dʼágua na forma de um só
arroio ao longo de uma nova avenida, a Ipiranga, Lupi já se mudara para a Zona
Sul da cidade, não sem deixar para trás parentes, saudades e até um samba em
homenagem ao lugar. Mas nem todo mundo via aquele recanto com olhos de poeta:
para boa parte da sociedade e do poder público, varrer a Ilhota do mapa era
mais uma questão de tempo. Dito e feito. As desapropriações abrangeram dezenas
de residências por ano e, a partir dos anos 1960, bairros como Restinga seriam
o destino de boa parcela das famílias removidas. A pá de cal, literalmente,
veio na década seguinte com o Projeto Renascença, cirurgia urbanística que
incluiu novos aterros do Guaíba, a abertura da primeira Avenida Perimetral e,
conforme previsto, a extinção da vila, já transfigurada em favela.
Passados mais de 40 anos da morte de
seu mais ilustre morador, poucos resquícios visíveis da Ilhota sobrevivem no
triângulo entre as avenidas Ipiranga, Érico Veríssimo e Getúlio Vargas. E ainda
que Lupi não esteja reverenciado por nenhuma placa de rua da Capital gaúcha
(São Paulo e Rio de Janeiro lhe foram mais generosos nesse quesito), em seu
território de origem ele ainda é o tal. A sua presença é lembrada no nome do
condomínio popular atrás do Ginásio Tesourinha − homenagem ao ponta-direita Osmar
Fortes Barcellos, outro filho lendário da região − e o mesmo ocorre com a
pequena praça ali instalada, em 1976, no ponto exato onde vicejou a Família
Rodrigues.
As reverências se estendem a um
modesto botequim batizado com o seu apelido, além do simpático bar-restaurante
de um prédio público inaugurado dois anos depois, ostentando na fachada não
apenas um busto em concreto mas também nome e sobrenome: Centro Municipal de
Cultura, Arte e Lazer Lupicínio Rodrigues. Por fim, há que se registrar os
esforços do herdeiro Lupinho, com o apoio do presidente da Câmara de
Vereadores, Carlos Alberto Garcia, para que essa área hoje vinculada
oficialmente ao Menino Deus tenha o seu status e denominação modificada para
Bairro Ilhota.
Lupi na sacumba
(Foto: Marcello
Campos/arquivo pessoal)
Sacumba era um galpão lateral da
sua casa, que ficava em um terreno estreito e comprido (13m x 57m) na Travessa
Batista, 97, uma rua sem saída. Era uma construção simples de alvenaria, com
pátio espaçoso. Os fundos davam para um dos braços de arroio da Ilhota.
Hamilton Chaves e Lupi defronte a Casa da Travessa Batista, 97,
na Ilhota.
na Ilhota.
Peça rara
Quando soube que as picaretas colocariam abaixo a velha cada dos Rodrigues (foto acima), o jornalista Hamilton Chaves (1925-1985) correu até a Ilhota para salvar possíveis lembranças daquele endereço. Voltou de lá com um troféu: a plaqueta de metal indicativa do número 97 da Travessa Batista. A peça descansa hoje em uma estante da sala de sua filha Maria Betânia, ao lado de um flagrante fotográfico do momento em que Hamilton entrevistava o amigo Lupicínio para a Revista do Globo, diante daquela fachada, em 1952
A “Ilhota” era
habitada por pessoas pobres que queriam ficar perto do centro de Porto Alegre.
Reprodução do Correio
do Povo de 1966 - foto Santos Vidarte
Ilhota
(Composição inédita)
Lupicínio Rodrigues –
1937
Ilhota, minha favela moderna,
Onde a vida na taberna
É das melhores que há.
Ilhota, arrabalde de enchente
E que nem assim a gente
Pensa em se mudar de lá.
Ilhota, do casebre de madeira,
Da mulata feiticeira,
Do caboclo cantador.
Ilhota, a tua simplicidade
É que dá felicidade
Para o teu pobre morador.
Na tua rua,
Joga-se em plena esquina.
Filho teu não se amofina
Em sair pro batedor.
Nem mesmo a “justa”
Vai visitar seus banhados
Pra não serem obrigados
A intervir em questões do amor.
(Texto do livro
“Almanaque Lupi”, de Marcelo Campos)
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