domingo, 27 de outubro de 2019

A Benzedeira Deolinda

Por Beraldo Figueiredo


O Fredo morava na Vila do Suspiro, lá pelos anos 50, ele não sabe como, nem lembra, só sabe que sentiu uma comichão nas paletas, começou a coçar, era uma bolha cheia d’água. No outro dia, amanheceu com trinta bolhas; à tardinha, eram mais de trezentas, coçava, coçava e sua mãe, Ernestina, perguntou:

− Homem de Deus! Isso é cobreiro e é de sapo, de aranha ou de cobra. Onde tu andou, guri?

− Não me lembro, pode ter sido na pescaria, na mangueira, no cercado...

− Homem, eu já te disse: não deixa a roupa no chão, tem bicho que tem veneno e tu pega cobreiro.

No outro dia, um vergão dos grandes se alastrava pelas costas, e a vó Josefa disse:

− Menino de Deus, isso é cobreiro dos brabos, têm duas pontas se alastrando. Se tu deixar uma ponta tocar na outra, tu vai morrer, meu neto, procura a Dona Deolinda, ela cura isso.

A coceira virou ardência, que virou dor, até a camisa, se encostasse, causava dores incômodas, nada podia tocar. Ele deitava de bruços, estava ficando insuportável.

− Vó, onde mora a Dona Deolinda? – Perguntou Fredo.

− Olha, filho, faz uns vinte anos que eu não vejo ela, mas fica no passo das Mercedes a mais de vinte quilômetros daqui. Lá todo mundo conhece ela, é só chegar no bolicho da Dona Mercedes, que ela logo te informa.

Fredo encilhou o cavalo e se mandou para o Oeste, onde ficava as Mercedes, e andou horas até que viu um arvoredo com laranjeiras, bergamoteiras, limoeiros, galinhas no quintal e um cusco latindo, uma casa de torrão com santa fé e viu a fumaça saindo pela chaminé e foi logo gritando:

− Ô de casa! Ô de casa!

Nisso, saiu uma velha com cacunda, devia ter mais de cem anos, pensou Fredo, cabelos enredados, brancos que nem neve, olhar torto e dentes falhados, foi logo dizendo:

− Que te a sucedi, menino?

− Procuro, a mando da minha vó Josefa, a Dona Deolinda!

− Sou eu. Aquela velha tá viva?

− Tá vivinha da silva, dona Deolinda, mas que idade a senhora tem?

− Se não errei nas contas, cento de dez, mas tira uns quinze... he, he. Já vi que o moço tá com problema, porque quando um moço procura uma velha só pode ser cobreiro ou doença ruim.

− Ah, a senhora é engraçada, mas meu caso é coisa séria, tô com cobreiro nas costas.

− Desce, guri, vamos vê essa coisa.

Fredo entrou na casa tosca, um fogão com uma chapa de ferro, o resto feito de saibro amarelo, ervas e pedaços de ossos pendurados e uma caveira pendurada em cima da porta. Sentou num cepo de corticeira.

− Tira a camisa e senta de costa para o lado da cabeça da terra.*

Deolinda pegou uma faca, entre as orações, recitava passando o fio da faca sobre as costas sem tocar nas feridas:

− Ave Maria, Mãe do Menino Deus, olhe esse menino com o mal do cobreiro e me dê a graça de Tua força para curar esse andarilho. Recebo a força dos astros do mundo, que vem da cabeça da terra e se faz, aqui no aço da faca que vai cortar.

Então pegou a faca, fez o sinal da cruz com ela e falou:

− O que eu corto? Cabeça, meio e rabo. – Continuava:

− O que eu benzo?

− Cobreiro brabo, corto no rabo, em nome de Deus e da Virgem Maria. – Repetia três vezes.

− Cobreiro brabo, corto na cabeça, em nome de Deus e da Virgem Maria. – Repetia três vezes.

− Depois, pegava um galho verde de arruda e repetia em forma de cruz e repetia três vezes:

− O que eu corto?

− Cobra, cobrão, aranha, aranhão, sapo, sapão. Corto a cabeça e corto o rabo. − e logo passa o galho em toda a ferida e joga fora.

− Quanto custa, Dona Deolinda? – perguntou o Fredo.

− Custa nada, moço, quem cura é Deus eu só sou instrumento. – respondeu a benzedeira.

Pois as bolhas foram secando, o vergão diminuindo, o tal cobreiro minguando e tão logo acabando.

Dentro de três dias estava curado, e a mãe do Fredo disse:

− Vou fazer uns bolinhos de sonho, tu pega teu cavalo e leva pra Dona Deolinda, pois ela te curou, menino. Também leva essa barrigueira de charque e esse pote de sal, leva arroz, feijão e batata doce como paga pela cura.

Prontamente, Fredo pegou todos os presentes colocou, numa mala de garupa feito de pano grosso e montou no seu cavalo e, a trotezito, foi indo para a casa de Dona Deolinda. Atravessou o banhado, subiu duas coxilhas, desceu pelo costado de um capão e, de longe, viu a casa de torrão. Foi se achegando, se achegando e, para sua surpresa, quanto mais perto chegava, mais impressionado ficava.

Não tinha nenhum arvoredo, a não ser árvores mortas, nem cusco e nem galinhas. Tudo se resumia a uma triste tapera de torrão sem porta, sem janela e só paredes que nada lembravam o que viu.

Desceu do cavalo e foi entrando. Só terra, só lembrança do que ali viveu, nada tinha, apenas o mistério de tudo que passou, mas reconheceu o fogão de chapa enferrujado, ainda via a caveira e logo adiante pedaços de ossos que estavam pendurados.

Subiu no cavalo e seguiu adiante, queria mais explicações, foi se achegando num bolicho à beira da estrada, perto de um passo de um rio, logo soube se tratava do bolicho da Mercedes, apeou do cavalo e entrou:

− Buenas, como vai, minha senhora?

− Vai se indo, moço, na vida a gente diz que vai tudo bem, porque se reclamar Deus castiga.

 − Me diga uma coisa, dona Mercedes, a Dona Deolinda, a benzedeira, onde a encontro?

− No cemitério a uns trezentos metros daqui. Mas por que pergunta se a velha já morreu há quinze anos.

− Nada não, porque se eu lhe contar não vai mesmo acreditar.

− Ah, pois é, tem gente que vê ela por aí, sei que a tapera dela é assombrada.

Fredo, então, pegou o cavalo e voltou para casa, mas pensou. Vou deixar estes presentes lá no cemitério, afinal, era pra ela.

Chegando ao cemitério, foi se achegando e viu uma idosa com uma moça e um menino rezando no túmulo sem marca com uma cruz.

Perguntou logo:

− Minha senhora, onde é o túmulo da Dona Deolinda?

− Esse aqui que estou rezando!

− É parente dela, senhora?

− Sim, sou filha, essa é neta e aquele ali o bisneto e vim pedir ajuda, pois tenho passado fome, meu marido faz dois meses que não aparece, foi trabalhar na charqueada e não voltou mais.

Fredo, então, percebeu o enlace do destino.

− Pois sua mãe me mandou te entregar isso.

Fredo foi até o cavalo e deu a ela os mantimentos que trouxera para a Deolinda.

− Mas, moço, que Deus te abençoe, mas minha mãe é falecida, como poderia mandar me entregar?

− Pois nem eu sei, minha senhora, e é melhor a gente nem tentar entender...

*****

*Cabeça da Terra - sentido Norte.

Nenhum comentário:

Postar um comentário