sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Proseando com Deus



Gravura de Francisco Stockinger

Com licença, Senhor, estou aqui
novamente para prosear mais pouco.
Ontem a prosa foi curta, pois minhas lidas profanas
me tiram bem cedo do galpão.
Deste galpão que é só nosso,
porque apenas nós dois podemos vê-lo (ou senti-lo).
Às vezes eu me pergunto como seria a minha vida
se eu não lhe tivesse encontrado?...
Talvez não tivesse chegado até aqui onde eu cheguei.
...Depois que lhe encontrei meu fardo é menos pesado.
Sim, pois já perdi as contas das vezes que Lhe procurei,
nas horas de incertezas.
Quantos atalhos evitados
por entender que aquele não era o melhor caminho.
Quantas correntezas cruzadas com a água meia-costela
mesmo que muitos dissessem que aquele rio,
por ali, não tinha como dar vau.
Quantas armadas perdidas
neste rodeio do mundo,
sentindo um pesar profundo,
ao enrodilhar o laço,
transformar-se num momento
em puro agradecimento por ter
de pronto entendido que,
com tiro-de-laço perdido,
o Senhor me fez protegido das dores de um cimbronaço.
Lembro-me daquela feita que deixei de procurá-lo
por entender que, solito, podia ganhar o mundo.
Me embretei em mil atalhos,
desci tantas correntezas,
levei muitos cimbronaços.

Até que um dia, enfim, nos encontramos de novo,
aqui no nosso galpão que só nós podemos vê-lo (ou senti-lo).
Eu tava quase na foz da última corredeira.
Os atalhos se cruzavam num labirinto sem fim
e o meu laço só em dois tentos
a poucas braças da ilhapa.

No silêncio dos que sentem a solidão dos ateus,
compreendi, finalmente,
que ninguém vive sem Deus.

Desde de então, todos os dias,
venho aqui prosear um pouco,
mesmo sabendo, Senhor,
que não vou ouvir Sua voz,
nem tampouco o seu riso.
Mesmo assim eu volto sempre
porque sinto que eu preciso.
Preciso sentir, Senhor, a Sua presença amiga
e esta luz que é o Seu olhar
a iluminar o caminho
por onde eu irei passar.

...E há de ser sempre assim:
todo dia eu hei de voltar
 pra gente poder prosear
...e para o Senhor me encontrar
quando precisar de mim.
Ouvirei, então, a Sua voz
e poderei vê-lo, enfim...

(De Jaime Brum Carlos, no livro “Coletânea da Poesia Gaúcha”,
Organizador: Dilan Camargo)

Glossário:

Prosear: bater papo, conversar fiado, papear;

Galpão: edificação rústica e aberta em dos lados para abrigo de homens, animais e material, etc;

Meia-costela: água pela barriga;

Armada: roda corrediça que se faz com o laço antes de atirá-lo no animal que se quer laçar;

Tiro-de-laço: ato de jogar o laço;

Solito: o mesmo que sozinho;

Embretar-se: meter-se em negócio difíceis;

Cimbronaço: puxão, trancaço ou golpe;

Ilhapa: parte mais grosa do laço.

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