domingo, 27 de outubro de 2019

Um ato desesperado de amor

Pai Quati

Autor desconhecido


Lá pelas bandas de Catuçaba, nos campos que a vista se perde, entre São Gabriel e Santa Maria*, num tempo muito distante, numa estância grande, tempo rigoroso da escravatura, que a lei permitia que homens brancos fossem donos de homens negros. Negros roubados de sua querência, vendidos por Reis negros aos escravagistas brancos, que os carregavam em porões fétidos de navios negreiros.

Foi nesta Fazenda (estância) que uma negra escrava entrou em trabalho de parto, nasceu um menino forte, valente que foi crescendo, brincando com todos, alegre e disposto.

O sinhozinho era um homem rude, gostava ele mesmo pegar o chicote e retalhar costas negras amarradas num tronco, o ato mais vil e covarde de um homem é amarrá-lo e ainda batê-lo pelas costas.

O menino negro, com doze anos, viu uma gritaria que vinha do tronco. Era sua mãe que estava sendo açoitada pelo Sinhozinho, homem forte, que tinha a mão pesada com o chicote impiedoso. Batia com precisão e, na medida em que via o couro romper as fibras das costas de sua mãezinha, sua indignação e revolta foi mais forte que o medo e a submissão e isso mexeu forte com ele que a tudo assistia. Então, numa agilidade espantosa, arrancou a faca da cintura do Sinhozinho e desferiu um golpe mortal em sua barriga.

Na mesma hora, os capangas correram atrás dele, que, muito veloz, sumiu na mata imensa que cobria aquela região.

Assim virou lenda, misturada com verdade, pois os anos foram passando, e ele foi vivendo no mato, visto por muitos vestido com peles do animal, ganhou o apelido de Quati, pela pele que lhe servia de roupa.

Virou homem-bicho, tinha medo dos brancos, dormia nas árvores como macaco, tinha uma imensa barba e cabelo negros como sua pele. Nas noites sem lua, viam um tição em brasa correndo pela mata cerrada, era o Pai Quati se locomovendo com sua tocha.

Tinha hábitos marcantes, como entrar na madrugada nas mangueiras para mamar nas tetas das vacas com terneiros, com alguns até trocava carne fresca por sal, mas sempre à distância, nunca ninguém o via, deixava a carne numa clareira e alguns simpatizantes, deixavam sal, que ele só recolhia à noite, para evitar emboscadas.

Porém o tempo, que não leva ninguém de compadre, envelheceu também Pai Quati, judiado pela vida, já não tinha a mesma habilidade e velocidade de fugir da peonada, que o perseguia. Um dia foi pego no laço, amarrada e levado para a mesma estância de que um dia fugiu. Os netos do homem que ele matou, conheceram a lenda viva do Pai Quati. A cabresto, como um animal xucro, urrando e berrando, pois perdera a capacidade de falar, apenas grunhia, foi enjaulado num quarto bem fechado.

Pai Quati, pela pequena janelinha, olhava a mata, os campos, sentia saudade dos seus recantos, não comeu, não bebeu, mesmo que insistissem, escolheu ficar olhando para a janela, e morrer de fome e sede sem trocar sua liberdade e voltar a ser escravo.

*****

O lendário Pai Quati hoje é homenageado em São Gabriel pelo CTG Querência do Pai Quati (hoje CTG Pai Quati), representa que a liberdade jamais será negociada e é uma homenagem nativista ao legendário crioulo das plagas, que trocou uma vida nas casas, para defender, com honra, o amor que nutria pela sua mãe.

Resumo da passagem do Pai Quati do Livro “Causos, Lendas e Assombrações”, de Osório Santana Figueiredo.

Compilado por Beraldo Figueiredo.

* Cidades gaúchas.

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