terça-feira, 1 de outubro de 2019

Um condutor poeta no bonde Tijuca

Texto de Américo Matos

(Escrito em 1953)


Quem mora na Tijuca e viaja de bonde tem que conhecer o Quintas, Jacinto Nunes Quintas, o condutor poeta, o homem que, apesar de exercer uma das profissões mais ingratas do Rio de Janeiro, leva a vida como se não pertencesse a este mundo de aborrecimentos e aflições.

Para ele o que importa é fazer versos. Se o bonde está cheio ou vazio, ou se os passageiros gostam ou não da sua poesia, pouco o preocupa. Desde cedinho, quando entra de serviço e até o final do dia, vai improvisando ou repetindo velhas rimas. De tudo faz versos. Qualquer motivo serve para espicaçar a sua veia de poeta, ou, quando não seja, para provar que é um cidadão que sabe levar a vida com bom humor. Quando se apresenta ao passageiro para cobrar a passagem, vai logo dizendo:

Por gentileza,
Aqui está o condutor
Que trata a todos com delicadeza.

Se o passageiro não entende o fraseado, ele aplica uma nova rima:

Cavalheiro, por favor,
Não se esqueça de pagar o condutor.

Enquanto isso, o bonde vai rompendo o tráfego, conduzindo o seu poeta atento ao sinal dos passageiros descendo aqui e ali, sempre advertidos pela voz do bardo:

O bonde para na esquina,
Pois vai saltar a menina.

E mais adiante:

Chegou no ponto de seção
Quem quiser saltar, aproveite a ocasião.

Quando aparece um fiscal da Light para verificar se está registrando direito as passagens, ele, com um sorriso de ironia, comenta:

Pode ver, seu fiscal,
Aqui está tudo legal.

Colocando o visto na sua papeleta de serviço, faz tilintar a campainha e prossegue a viagem, fazendo versos e malabarismos para cobrar as passagens.

Quando os automóveis oferecem perigo aos pingentes, não se esquece de adverti-los:

Cuidado com a roupa
Que pode virar estopa.

Tendo os olhos sempre atentos ao trânsito, não deixa de dar o seu aviso aos colegiais que descem do seu bonde:

Meninos e meninas,
Nunca deixem de olhar
Em todas as esquinas,
Que pretendam atravessar.

Se o bonde para porque a rua está interrompida em consequência de uma colisão de automóveis, ele deixa os estribos balançando a cabeça:

Tudo isso podia ser evitado,
Se tanto um como outro,
Tivessem mais cuidado.

O repórter quis saber a razão do seu bom humor e a resposta veio sem demora:

Era assim que devia ser
Todo empregado:
Trabalhar satisfeito
E ser delicado.

E completa:

Eu reconheço e com razão
Que tanto não devia aborrecer,
Mas é essa minha missão,
Fazer versos até morrer.

Com o temperamento original e trabalhando no mesmo bonde desde 1934, Quintas conseguiu muitos amigos que gostam de ouvir os seus versos, inclusive algumas moças empregadas em casas de família que puxam por ele. Foi numa dessas ocasiões, em 1938, que conheceu uma jovem e não resistindo aos seus encantos, cantou a sua beleza em versos. A moça sorriu agradecida e daí a poucos meses estavam os dois diante o altar. Dessa união com dona Mabile Ferreira Quintas nasceu a sua filhinha Darci, uma linda menina que atualmente conta nove anos de idade e é a maior admiradora dos seus versos.

Darci, que é filha única do casal, está sendo educada com esmero. Para ela estão todas as atenções do pai que não mede sacrifícios para lhe dar conforto. É um pai feliz que, se antes dizia versos, agora, maior razão tem para prosseguir na sua inspiração de poeta.

Atualmente, Jacinto está afastado do serviço de condução de bondes. Tendo adoecido, encontra-se em tratamento pelos médicos da Caixa dos Servidores da Light. Entretanto, não perdeu o seu tempo em ficar olhando as paredes do seu quarto de doente. Procurou lembrar-se dos versos que diz aos seus passageiros e, escrevendo outros, resolveu reunir tudo num livro que já entregou a uma oficina para editar com o título Poesias de um condutor de bonde. E não pensem que se trata de um livrinho de umas vinte ou trinta páginas. Nada disso, será um volume contendo de 250 a 300 composições. E, como todo escritor que não gosta que suas obras fiquem esquecidas nas prateleiras das livrarias, já está cuidando da propaganda, que, naturalmente, não podia deixar de ser em versos. Ei-la:

Atenção, povo brasileiro!
Atenção, povo tijucano!
Breve... à venda um livro de poesias
O condutor do Tijuca está fazendo todo bacano.

Aguardem dentro de poucos dias
O sensacional livro de poesias,
Tendo como autor
Aquele humilde condutor.

Companheiros de trabalho,
Meus queridos passageiros,
Espero que todos comprem um livro,
Estrangeiros e brasileiros.

Termina o prospecto dizendo:

“À venda nas bancas de jornal da Tijuca, livrarias e com o autor”..

Ao ensejo da passagem do aniversário de Última Hora, Quintas inspirou-se e nos mandou a sua saudação num soneto:

 Salve aniversário de Última Hora!
Salve doze de junho de cinquenta e três!
Glória à Última Hora cada vez melhor!
Vamos! Vamos! Comprar mais uma vez!

Última Hora é um grande jornal,
É um orgulho para todos no Rio de Janeiro.
Leio com satisfação e mando para Portugal,
Entre muitos jornais, para mim é o primeiro.

Salve todos diretos da Última Hora!
E todos que trabalham na ocasião atual.
Todos a devem comprar, vamos! Embora!

Não se esqueçam os do Brasil e os de Portugal,
Última Hora é o melhor do Distrito Federal.
Vamos! Vamos! Todos comprar pessoal!

Matos, Américo: “Um condutor poeta no bonde Tijuca”.

(Última Hora, Rio de Janeiro, 22 de junho de 1953)


O saudoso bonde passa, o motorneiro protegido por dois “meganhas”, devido à violenta greve que ameaçava o patrimônio público.

Adendo final

Em 22 de junho de 1953, a Última Hora (Jornal carioca), publicava o lançamento do livro do condutor de bonde, Jacinto Nunes Quintas, intitulado “Poesias de um condutor de bonde”. No momento do lançamento, ele estava afastado do trabalho e se dedicava ainda mais à sua atividade preferida: fazer versos. Jacinto começou a trabalhar em 1934, ficou lembrado por seu bom humor mesmo nas dificuldades enfrentadas no dia-a-dia. Desde cedinho, quando entrava de serviço, até o final do dia, ia improvisando ou repetindo velhas rimas. O condutor podia fazer versos de tudo o que via, qualquer motivo podia servir de inspiração. Por seu bom humor no transporte coletivo, conquistou àquela que seria sua esposa.

(Do blog Memória Carris)

3 comentários:

  1. Ótimo texto. Ótimo blog. Já estou viajando nessa nobre iniciativa!

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  2. Já estou também no compartilhaço! Parabéns pela iniciativa. Estamos juntos!

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    1. Amigo Lopes, obrigado pelo comentário e boa leitura de todos (ou quase todos) textos contidos nesse nosso modesto almanaque. Nilo S. Moraes

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