Texto de Américo Matos
(Escrito em 1953)
Quem mora na Tijuca e viaja de bonde
tem que conhecer o Quintas, Jacinto Nunes Quintas, o condutor poeta, o homem
que, apesar de exercer uma das profissões mais ingratas do Rio de Janeiro, leva
a vida como se não pertencesse a este mundo de aborrecimentos e aflições.
Para ele o que importa é fazer
versos. Se o bonde está cheio ou vazio, ou se os passageiros gostam ou não da
sua poesia, pouco o preocupa. Desde cedinho, quando entra de serviço e até o
final do dia, vai improvisando ou repetindo velhas rimas. De tudo faz versos.
Qualquer motivo serve para espicaçar a sua veia de poeta, ou, quando não seja,
para provar que é um cidadão que sabe levar a vida com bom humor. Quando se
apresenta ao passageiro para cobrar a passagem, vai logo dizendo:
Por gentileza,
Aqui está o condutor
Que trata a todos com delicadeza.
Aqui está o condutor
Que trata a todos com delicadeza.
Se o
passageiro não entende o fraseado, ele aplica uma nova rima:
Cavalheiro, por favor,
Não se esqueça de pagar o condutor.
Não se esqueça de pagar o condutor.
Enquanto isso, o bonde vai rompendo o
tráfego, conduzindo o seu poeta atento ao sinal dos passageiros descendo aqui e
ali, sempre advertidos pela voz do bardo:
O
bonde para na esquina,
Pois vai saltar a menina.
Pois vai saltar a menina.
E mais
adiante:
Chegou no ponto de seção
Quem quiser saltar, aproveite a ocasião.
Quem quiser saltar, aproveite a ocasião.
Quando aparece um fiscal da Light
para verificar se está registrando direito as passagens, ele, com um sorriso de
ironia, comenta:
Pode ver, seu fiscal,
Aqui está tudo legal.
Aqui está tudo legal.
Colocando o visto na sua papeleta de
serviço, faz tilintar a campainha e prossegue a viagem, fazendo versos e malabarismos
para cobrar as passagens.
Quando os
automóveis oferecem perigo aos pingentes, não se esquece de adverti-los:
Cuidado com a roupa
Que pode virar estopa.
Que pode virar estopa.
Tendo os olhos sempre atentos ao
trânsito, não deixa de dar o seu aviso aos colegiais que descem do seu bonde:
Meninos e meninas,
Nunca deixem de olhar
Em todas as esquinas,
Que pretendam atravessar.
Nunca deixem de olhar
Em todas as esquinas,
Que pretendam atravessar.
Se o bonde para porque a rua está
interrompida em consequência de uma colisão de automóveis, ele deixa os
estribos balançando a cabeça:
Tudo isso podia ser evitado,
Se tanto um como outro,
Tivessem mais cuidado.
Se tanto um como outro,
Tivessem mais cuidado.
O repórter
quis saber a razão do seu bom humor e a resposta veio sem demora:
Era assim que devia ser
Todo empregado:
Trabalhar satisfeito
E ser delicado.
Todo empregado:
Trabalhar satisfeito
E ser delicado.
E completa:
Eu reconheço e com razão
Que tanto não devia aborrecer,
Mas é essa minha missão,
Fazer versos até morrer.
Que tanto não devia aborrecer,
Mas é essa minha missão,
Fazer versos até morrer.
Com o temperamento original e
trabalhando no mesmo bonde desde 1934, Quintas conseguiu muitos amigos que
gostam de ouvir os seus versos, inclusive algumas moças empregadas em casas de
família que puxam por ele. Foi numa dessas ocasiões, em 1938, que conheceu uma
jovem e não resistindo aos seus encantos, cantou a sua beleza em versos. A moça sorriu
agradecida e daí a poucos meses estavam os dois diante o altar. Dessa união com
dona Mabile Ferreira Quintas nasceu a sua filhinha Darci, uma linda menina que
atualmente conta nove anos de idade e é a maior admiradora dos seus versos.
Darci, que é filha única do casal,
está sendo educada com esmero. Para ela estão todas as atenções do pai que não
mede sacrifícios para lhe dar conforto. É um pai feliz que, se antes dizia
versos, agora, maior razão tem para prosseguir na sua inspiração de poeta.
Atualmente, Jacinto está afastado do
serviço de condução de bondes. Tendo adoecido, encontra-se em tratamento pelos
médicos da Caixa dos Servidores da Light. Entretanto, não perdeu o seu tempo em
ficar olhando as paredes do seu quarto de doente. Procurou lembrar-se dos
versos que diz aos seus passageiros e, escrevendo outros, resolveu reunir tudo
num livro que já entregou a uma oficina para editar com o título Poesias de um
condutor de bonde. E não pensem que se trata de um livrinho de umas vinte ou
trinta páginas. Nada disso, será um volume contendo de 250 a 300 composições. E,
como todo escritor que não gosta que suas obras fiquem esquecidas nas
prateleiras das livrarias, já está cuidando da propaganda, que, naturalmente,
não podia deixar de ser em
versos. Ei-la :
Atenção, povo brasileiro!
Atenção, povo tijucano!
Breve... à venda um livro de poesias
O condutor do Tijuca está fazendo todo bacano.
Atenção, povo tijucano!
Breve... à venda um livro de poesias
O condutor do Tijuca está fazendo todo bacano.
Aguardem dentro de poucos dias
O sensacional livro de poesias,
Tendo como autor
Aquele humilde condutor.
O sensacional livro de poesias,
Tendo como autor
Aquele humilde condutor.
Companheiros de trabalho,
Meus queridos passageiros,
Espero que todos comprem um livro,
Estrangeiros e brasileiros.
Meus queridos passageiros,
Espero que todos comprem um livro,
Estrangeiros e brasileiros.
Termina o
prospecto dizendo:
“À venda nas
bancas de jornal da Tijuca, livrarias e com o autor”..
Ao ensejo da passagem do aniversário
de Última Hora, Quintas inspirou-se e
nos mandou a sua saudação num soneto:
Glória à Última Hora cada vez melhor!
Vamos! Vamos! Comprar mais uma vez!
Vamos! Vamos! Comprar mais uma vez!
Última Hora é um
grande jornal,
É um orgulho para todos no Rio de Janeiro.
Leio com satisfação e mando para Portugal,
Entre muitos jornais, para mim é o primeiro.
É um orgulho para todos no Rio de Janeiro.
Leio com satisfação e mando para Portugal,
Entre muitos jornais, para mim é o primeiro.
Salve todos diretos da
Última Hora!
E todos que trabalham na ocasião atual.
Todos a devem comprar, vamos! Embora!
E todos que trabalham na ocasião atual.
Todos a devem comprar, vamos! Embora!
Não se esqueçam os do
Brasil e os de Portugal,
Última Hora é o melhor do Distrito Federal.
Vamos! Vamos! Todos comprar pessoal!
Última Hora é o melhor do Distrito Federal.
Vamos! Vamos! Todos comprar pessoal!
Matos, Américo: “Um
condutor poeta no bonde Tijuca”.
(Última Hora, Rio de
Janeiro, 22 de junho de 1953)
O saudoso bonde passa, o motorneiro
protegido por dois “meganhas”, devido à violenta greve que ameaçava o
patrimônio público.
Adendo final
Em 22 de junho de 1953, a Última Hora (Jornal
carioca), publicava o lançamento do livro do condutor de bonde, Jacinto Nunes
Quintas, intitulado “Poesias de um condutor de bonde”. No momento do
lançamento, ele estava afastado do trabalho e se dedicava ainda mais à sua
atividade preferida: fazer versos. Jacinto começou a trabalhar em 1934, ficou
lembrado por seu bom humor mesmo nas dificuldades enfrentadas no dia-a-dia.
Desde cedinho, quando entrava de serviço, até o final do dia, ia improvisando
ou repetindo velhas rimas. O condutor podia fazer versos de tudo o que via,
qualquer motivo podia servir de inspiração. Por seu bom humor no transporte
coletivo, conquistou àquela que seria sua esposa.
(Do blog Memória
Carris)
Ótimo texto. Ótimo blog. Já estou viajando nessa nobre iniciativa!
ResponderExcluirJá estou também no compartilhaço! Parabéns pela iniciativa. Estamos juntos!
ResponderExcluirAmigo Lopes, obrigado pelo comentário e boa leitura de todos (ou quase todos) textos contidos nesse nosso modesto almanaque. Nilo S. Moraes
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