quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Saindo da rotina



A insistência dos leitores em querer saber como é que os compositores gaúchos começaram a agradar o público me fez sair um pouco da rotina, para dar uma explicação. Para isso, tenho de voltar um pouco no tempo e falar novamente da composição Se acaso você chegasse, que foi a música que abriu o caminho no centro do país para as gravações dos compositores do Rio Grande do Sul.

A história é a seguinte: no ano de 1935, surgiu em Porto Alegre a Rádio Farroupilha, dirigida pelo grande radialista Arnaldo Balvê, que procurou promover os compositores “Prata da Casa”. Foi nessa época que eu, para brincar com um amigo, Heitor Barros*, já falecido, fiz o samba Se acaso você chegasse. Os marinheiros que seguidamente aqui chegavam, vendo que muita gente cantava aquela música, resolveram incluí-la no repertório da orquestra dos navios, espalhando-a para todo o Brasil, sem que ninguém soubesse quem era o seu autor. O pessoal de uma gravadora, que ouviu o meu samba e testemunhou o sucesso que fazia, resolveu edita-la, à espera que seu autor aparecesse. Foi com grande dificuldade que consegui provar que a música era minha, porque ninguém acreditava que um gaúcho pudesse compor um samba tipicamente carioca. Depois, os jornais de todo o Brasil começaram a publicar que no Rio Grande do Sul também se compunha samba, fazendo com que os editores de discos começassem a se interessar por nossas músicas.

Depois dessa conversa toda, vai de novo a letra do meu samba.

Se acaso você chegasse

Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins

(Lupi, falando ao amigo Heitor Barros)

Se acaso você chegasse,
No meu chatô e encontrasse
Aquela mulher
Que você gostou.
Será que tinha coragem
De trocar nossa amizade
Por ela que já lhe abandonou?

(Agora, Lupi, depois da pergunta feita acima,
ele diz ao amigo o porquê da pergunta.)

Eu falo porque essa dona
Já mora no meu barraco
À beira de um regato
E de um bosque em flor.
De dia me lava a roupa,
De noite me beija a boca,
E assim nós vamos vivendo de amor.

(Do livro “Foi assim − 
o cronista Lupicínio conta as histórias das suas músicas”,
de Lupicínio Rodrigues − L&PM)

*Samba de 1938 foi uma forma de propor paz ao amigo Heitor Barros, de quem ele roubara a mulher. Heitor gostou tanto da música que perdoou Lupicínio, pois este sabia que agira mal e temia perder o amigo, que muito prezava.


Nenhum comentário:

Postar um comentário