quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Aos pais

Diante de uma criança

Carlos Drummond de Andrade


Como fazer feliz meu filho?
Não há receitas para tal.
Todo o saber, todo o meu brilho
de vaidoso intelectual

vacila ante a interrogação
gravada em mim, impressa no ar.
Bola, bombons, patinação
talvez bastem para encantar?

Imprevistas, fartas mesadas,
louvores, prêmios, complacências,
milhões de coisas desejadas,
concedidas sem reticências?

Liberdade alheia a limites,
perdão de erros, sem julgamento,
e dizer-lhe que estamos quites,
conforme a lei do esquecimento?

Submeter-se à sua vontade
sem ponderar, sem discutir?
Dar-lhe tudo aquilo que há
de entontecer um grão-vizir?

E se depois de tanto mimo
que o atraia, ele se sente
pobre, sem paz e sem arrimo,
alma vazia, amargamente?

Não é feliz. Mas que fazer
para consolo desta criança?
Como em seu íntimo acender
uma fagulha de confiança?

Eis que acode meu coração
e oferece, como uma flor,
a doçura desta lição:
dar a meu filho meu amor.

Pois o amor resgata a pobreza,
vence o tédio, ilumina o dia
e instaura em nossa natureza
a imperecível alegria.

Porque amamos os nossos filhos

Carlos Drummond de Andrade

Ignacinho veio pedir-me uma vitrola como presente do seu próximo aniversário. Os últimos acontecimentos não são de molde a justificar essa pretensão do meu querido filho e companheiro. Presentes de aniversário dão-se a meninos bem comportados, que não trocam as aulas pelo futebol, nem as vigílias do estudo pelas do cinema. Ora Ignacinho tem sido justamente o contrario desse tipo de jovem exemplar, que é muito comum no “Coração” de Edmundo de Amicis e outros livros estrangeiros, mas que infelizmente não parece ter-se dado bem com o clima do Brasil. Como pois solicitar-me festas?

E daí Ignacinho não é mais uma criança. Membro do conselho fiscal do Centro dos Preparatorianos e colaborador das páginas de anúncio (as únicas que prestam) do “Fonfon” e do “Para Todos”, ele adquiriu já uma personalidade social e literária que não se coadunava com as calças curtas nem com as regalias conferidas aos frangotes de 13 anos. Rapazinho de calça comprida não tem direito a mimos infantis. Sócio do Centro dos Preparatorianos também não tem. Poeta ou prosador ainda que incipiente, também não.

Fiz ver todas essas coisas a Ignacinho. Sem ferocidade, palavra. Minha intenção era feri-lo no seu orgulhosinho púbere, de modo que ele renunciasse ostensivamente à vitrola, poupando-me a dor de recusá-la. Eu sou feito do mesmo barro de que se fazem todos os pais, e às vezes meu coração amolece nos momentos mais sérios. Em minha consciência achava que Ignacinho não tinha direito à maquina falante. Mas e coragem para dizê-lo?

Ignacinho, achando fúteis as minhas razões, reforçou o pedido com a promessa de dois belíssimos exames parcelados no Ginásio. Era vitrola para lá, exames para cá. Se eu fechasse o negócio, ele capricharia nas escritas e se excederia nas orais. Adverti-lhe de que não faria mais do que a sua estrita obrigação, prestando bons exames das humanidades (ele diz “desumanidades”) que se não estudara, devia ter estudado a fundo.

Mas intimamente, e sem cálculo, eu já tinha cedido um pouco.

Ignacinho prometeu mais. Prometeu ótimo comportamento durante as férias, e infatigável aplicação durante o próximo ano letivo. Em todos os futuros anos letivos. Na Faculdade de Medicina, até o 6º ano, seria o modelo dos candidatos a mortícola*. E na vida prática — Ignacinho nesse momento chegou a pensar na vida prática — seria o mortícola mais brilhante da sua geração, do seu país, do seu continente, do mundo. E tudo isso por um preço tão pequeno! O preço de uma vitrola Decca, das menores...

Antes que o rapaz me prometesse maiores absurdos, eu, desarmado, fiz como Capablanca: entreguei-lhe os pontos. Mas frisei bem: não contasse comigo na hora de comprar os discos.

O capetinha deu uma gargalhada e confessou, cínico:

− Não precisa não, papai. Os discos eu já tenho. Mamãe me deu. Eu falei com ela que o senhor tinha me dado a vitrola...

Astúcia, teimosia e senso comercial da alma infantil! Ignacinho explorou-me duplamente, é certo, pois pelo menos aqui no sertão, quem paga os presentes da mulher é o marido. Mas não são essas pequeninas coisas que nos fazem amar os nossos queridos filhos?

(Da Revista de Antropofagia número 2, junho de 1928)

Com a grafia atualizada

*mortícula, diz-se de um mau médico, que mata os doentes por inépcia.

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