É difícil para um pai de muitos
filhos dizer de quem ele gosta mais. A gente fica meio sem graça e, em geral,
responde que gosta de todos. Eu sou pai de muitas músicas e falo sem o menor
pudor que a minha preferida é “Cabeleira do Zezé”. Por quê? Porque “Cabeleira
do Zezé” não só foi o meu primeiro grande sucesso, como também foi a minha
descoberta da marchinha de carnaval. Antes dela, eu não era autor de
marchinhas. Quando fiz “Cabeleira do Zezé”, eu compunha (principalmente) sambas
de balanço e vivia ocupado quase 24 horas por dia dentro da TV Excelsior
compondo trilhas, vinhetas e músicas para programas. Minha cabeça era muito
mais voltada para essas coisas. E parece que “cabeleira do Zezé” veio me dizer
que eu podia fazer uma marchinha diferente com jeito especial.
“Cabeleira do Zezé” nasceu num bar.
Doce lugar para nascer uma música. Ficava na Princesa Isabel e era chamado de
bar São Jorge. Quando terminava o meu trabalho na TV Excelsior, em Ipanema, eu
ia para Copacabana e gostava desse barzinho. Tinha uma sinuca no fundo. Eu
posso até arriscar, mas sou do tipo que tem medo de furar o pano e prefiro não
jogar. Prefiro tomar minha cerveja e ver meus amigos. Perto do bar, na esquina
da avenida Atlântica, ficava a boate Fred´s, onde era o hotel Meridien e hoje é
o Windsor Atlântica. Tinha um posto de gasolina embaixo. Em cima era a boate
Fred´s, por isso diziam que embaixo se abastecia o carro e em cima o cliente. O
Carlos Machado fez muitas peças por lá. E aquelas garotinhas do teatro iam
pegar o ônibus no ponto que ficava bem em frente ao bar São Jorge. Isso era
mais um atrativo pra gente. A cervejinha, os amigos e aquelas meninas bonitas
do Fred´s... Numa noite, cheguei lá e me sentei à minha mesa cativa. Aí chegou
o garçom para me servir. Era bem exótico e parecia um dos Beatles, todo
cabeludo. Era o ano de 1963 e homem com cabelo do ombro para baixo chamava
muita atenção. E ele ainda usava um par de botinhas. Eu logo entendi que ele
devia ser fã dos Beatles. Porque esse quarteto não mudou somente a música do
mundo inteiro, mas também os costumes de toda uma geração. E aquele garçom era
o protótipo da influência dos Beatles no Brasil e um dos primeiros que vi por
aqui. E ele chegava com a bandeja e servia todo o mundo sempre muito
comunicativo. Seu nome era José Antônio, o vulgo Zezé. Aí me veio aquele
estalo! Não que eu não tivesse feito marchinhas ainda. Eu já fazia as minhas.
Na peça Esputinique do morro, muitas
músicas eram marchinhas de carnaval. E comecei a maturar outra na cabeça. Aí, o
Zezé passou de novo e eu disse: “Vem cá, meu irmão! Se eu fosse um desenhista,
ia fazer uma caricatura sua, mas como não sou, eu vou fazer uma música”. E
comecei ali mesmo na mesa:
Olha a cabeleira do Zezé
Será que ele é?
Será que ele é?
Será que ele é bossa-nova?
Será que ele é Maomé?
Parece que é transviado,
Mas isso eu não sei se ele é.
Corta o cabelo dele! (pam, pam)
Corta o cabelo dele! (pam, pam)
Corta o cabelo dele! (pam, pam)
Corta o cabelo dele! (pam, pam)
E assim nasceu “Cabeleira do Zezé”. Eu
cantei a primeira parte ali mesmo e foi uma brincadeira geral com todo o mundo
cantando junto. E a marchinha ficou na minha cabeça.
No dia seguinte, trabalhando na
Excelsior, o Luiz Reis me convidou para dar uma passadinha na Rádio Nacional.
Subimos e encontramos o Roberto Faissal, ator de radioteatro e meu futuro
parceiro. “Escuta, João, você tem alguma música de carnaval aí?” O Roberto era
um sujeito sério e tinha cara de tudo, menos de carnaval. Mas o que tem que
acontecer acontece! “Eu sou muito amigo do Jorge Goulart e quero mostrar uma música
pra ele”. Aí, me lembrei de “Cabeleira do Zezé” e cantei para o Faissal, que
ficou louco com a música. “Roberto, faz o que quiser com essa música. Pode
trocar palavra, verso, o que quiser. Isso aí é seu!” e ele realmente fez umas
modificações na música e mostrou para o Jorge Goulart, que já era tarimbado
nesse negócio de marchinha. Eu não fui à gravação. Quem comandou tudo foi o
Roberto Faissal. Os dois investiram nessa gravação e eu também por intermédio
do meu editor. Mas não foi um disco independente. Foi faixa um do lado A do LP
da Mocambo. Porque quando o João Araújo, o pai do Cazuza e diretor artístico da
gravadora ouviu “Cabeleira do Zezé”, ele ficou louco e botou como abertura do
disco. O resto é história.
Quando “Cabeleira do Zezé” foi
lançada para o carnaval de 1964, eu estava muito ocupado trabalhando na
Excelsior e não fazia a menor ideia do sucesso dessa música. Foi quando o
diretor Carlos Manga me incluiu na equipe de transmissão do baile do Municipal
em pleno carnaval. “Mas, Manga, o que eu vou fazer lá? Eu nem sou
entrevistador!” Naquela época, eu ainda não aparecia na frente das câmeras. “Você
vai botar seus smoking e vai. Só
isso.” Então, eu fui. Cheguei lá muito bem acompanhado pela minha colega de
televisão Sônia Lancelotti. E fomos para o salão lotado, que é a plateia do
teatro, só que sem as cadeiras. E a orquestra começou tocando “Cidade
maravilhosa”. Porque baile que não abre com “Cidade maravilhosa” não é um baile
sério, não é? E aí, logo em seguida e para minha surpresa, tocou “Cabeleira do
Zezé”. Eu ainda não tinha ouvido a minha marchinha no salão. E quando tocou, o
Municipal foi abaixo. Todo o mundo cantando nas frisas, nos camarotes e no
salão, embaixo. “Sônia, não tô acreditando nisso!” Nem ela estava. “Agora, eu
entendo por que o Manga me mandou vir pra cá...” E aí me entrevistaram com todo
aquele papo que eu estava ganhando o carnaval e era o “rei do baile”. E cada
vez que a orquestra tocava “Cabeleira do Zezé”, eu e Sônia corríamos para o
bar. Nos bailes do Teatro Municipal, cerveja não era vendida, apenas whisky,
que era muito caro, e champagne, um pouco mais barato. Então, nós fomos de
champagne, brindando cada vez que tocava “Cabeleira do Zezé”. Só sei que
naquele baile, “Cabeleira do Zezé” deve ter sido tocada uma trinta vezes e o
prejuízo foi enorme. Lá pelas cinco da manhã, nosso dinheiro acabou e o pessoal
da Excelsior já tinha ido embora. Voltamos do centro da cidade para Copacabana
a pé. Sem dinheiro, a pé e felizes da vida.
(Do livro “Cabeleira
do Zezé e outras histórias”,
de João Roberto Kelly e André Weller)
Meu relato pessoal
No começo de janeiro de 1964, fui
um dos 80 jovens gaúchos selecionados, num total de quase 500, para servir no
Núcleo da Divisão Aeroterrestre, a tropa de elite de paraquedistas do Exército
Brasileiro. Em fevereiro daquele ano, em pleno domingo de carnaval, os 12
gaúchos, que foram lotados na 1ª Cia de Fuzileiros Aeroterrestres, resolveram
pegar o trem da Central do Brasil, na estação de Marechal Hermes, para
acompanhar o desfile das escolas de samba na avenida Presidente Vargas, no
centro do Rio de Janeiro. No trem lotado, o povo cantava as marchinhas de
carnaval que estavam tocando nas rádios e, uma delas era “Cabeleira do Zezé”.
Grupos de jovens, fazendo um trenzinho em todos os vagões cantava a seguinte
paródia da música:
“Olha a cabeleira do Zaru*, será que ele tem cabelo no cu?”
Nós, os gaúchos, ficamos
espantados de como pessoas comuns num coletivo podiam cantar uma marchinha com
letra pornográfica. Percebemos, então, que aquele era o espírito carioca que
teríamos que entender dali pra frente.
Em 2015, num show no Rio
Scenarium, na rua do Lavradio, na Lapa, o João Roberto Kelly apresentava um
espetáculo cantando suas marchinhas. No intervalo, contei, resumidamente, essa história para
ele.
Nilo da Silva Moraes
*Alziro Zarur, guia espiritual da
Legião da Boa Vontade, tinha um programa religioso numa rádio do Rio, sempre
nas madrugadas para consolar o povão aflito da cidade.
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