quarta-feira, 1 de junho de 2016

Cabeleira do Zezé



É difícil para um pai de muitos filhos dizer de quem ele gosta mais. A gente fica meio sem graça e, em geral, responde que gosta de todos. Eu sou pai de muitas músicas e falo sem o menor pudor que a minha preferida é “Cabeleira do Zezé”. Por quê? Porque “Cabeleira do Zezé” não só foi o meu primeiro grande sucesso, como também foi a minha descoberta da marchinha de carnaval. Antes dela, eu não era autor de marchinhas. Quando fiz “Cabeleira do Zezé”, eu compunha (principalmente) sambas de balanço e vivia ocupado quase 24 horas por dia dentro da TV Excelsior compondo trilhas, vinhetas e músicas para programas. Minha cabeça era muito mais voltada para essas coisas. E parece que “cabeleira do Zezé” veio me dizer que eu podia fazer uma marchinha diferente com jeito especial.

“Cabeleira do Zezé” nasceu num bar. Doce lugar para nascer uma música. Ficava na Princesa Isabel e era chamado de bar São Jorge. Quando terminava o meu trabalho na TV Excelsior, em Ipanema, eu ia para Copacabana e gostava desse barzinho. Tinha uma sinuca no fundo. Eu posso até arriscar, mas sou do tipo que tem medo de furar o pano e prefiro não jogar. Prefiro tomar minha cerveja e ver meus amigos. Perto do bar, na esquina da avenida Atlântica, ficava a boate Fred´s, onde era o hotel Meridien e hoje é o Windsor Atlântica. Tinha um posto de gasolina embaixo. Em cima era a boate Fred´s, por isso diziam que embaixo se abastecia o carro e em cima o cliente. O Carlos Machado fez muitas peças por lá. E aquelas garotinhas do teatro iam pegar o ônibus no ponto que ficava bem em frente ao bar São Jorge. Isso era mais um atrativo pra gente. A cervejinha, os amigos e aquelas meninas bonitas do Fred´s... Numa noite, cheguei lá e me sentei à minha mesa cativa. Aí chegou o garçom para me servir. Era bem exótico e parecia um dos Beatles, todo cabeludo. Era o ano de 1963 e homem com cabelo do ombro para baixo chamava muita atenção. E ele ainda usava um par de botinhas. Eu logo entendi que ele devia ser fã dos Beatles. Porque esse quarteto não mudou somente a música do mundo inteiro, mas também os costumes de toda uma geração. E aquele garçom era o protótipo da influência dos Beatles no Brasil e um dos primeiros que vi por aqui. E ele chegava com a bandeja e servia todo o mundo sempre muito comunicativo. Seu nome era José Antônio, o vulgo Zezé. Aí me veio aquele estalo! Não que eu não tivesse feito marchinhas ainda. Eu já fazia as minhas. Na peça Esputinique do morro, muitas músicas eram marchinhas de carnaval. E comecei a maturar outra na cabeça. Aí, o Zezé passou de novo e eu disse: “Vem cá, meu irmão! Se eu fosse um desenhista, ia fazer uma caricatura sua, mas como não sou, eu vou fazer uma música”. E comecei ali mesmo na mesa:

Olha a cabeleira do Zezé
Será que ele é?
Será que ele é?

Será que ele é bossa-nova?
Será que ele é Maomé?
Parece que é transviado,
Mas isso eu não sei se ele é.

Corta o cabelo dele! (pam, pam)
Corta o cabelo dele! (pam, pam)
Corta o cabelo dele! (pam, pam)
Corta o cabelo dele! (pam, pam)

E assim nasceu “Cabeleira do Zezé”. Eu cantei a primeira parte ali mesmo e foi uma brincadeira geral com todo o mundo cantando junto. E a marchinha ficou na minha cabeça.

No dia seguinte, trabalhando na Excelsior, o Luiz Reis me convidou para dar uma passadinha na Rádio Nacional. Subimos e encontramos o Roberto Faissal, ator de radioteatro e meu futuro parceiro. “Escuta, João, você tem alguma música de carnaval aí?” O Roberto era um sujeito sério e tinha cara de tudo, menos de carnaval. Mas o que tem que acontecer acontece! “Eu sou muito amigo do Jorge Goulart e quero mostrar uma música pra ele”. Aí, me lembrei de “Cabeleira do Zezé” e cantei para o Faissal, que ficou louco com a música. “Roberto, faz o que quiser com essa música. Pode trocar palavra, verso, o que quiser. Isso aí é seu!” e ele realmente fez umas modificações na música e mostrou para o Jorge Goulart, que já era tarimbado nesse negócio de marchinha. Eu não fui à gravação. Quem comandou tudo foi o Roberto Faissal. Os dois investiram nessa gravação e eu também por intermédio do meu editor. Mas não foi um disco independente. Foi faixa um do lado A do LP da Mocambo. Porque quando o João Araújo, o pai do Cazuza e diretor artístico da gravadora ouviu “Cabeleira do Zezé”, ele ficou louco e botou como abertura do disco. O resto é história.

Quando “Cabeleira do Zezé” foi lançada para o carnaval de 1964, eu estava muito ocupado trabalhando na Excelsior e não fazia a menor ideia do sucesso dessa música. Foi quando o diretor Carlos Manga me incluiu na equipe de transmissão do baile do Municipal em pleno carnaval. “Mas, Manga, o que eu vou fazer lá? Eu nem sou entrevistador!” Naquela época, eu ainda não aparecia na frente das câmeras. “Você vai botar seus smoking e vai. Só isso.” Então, eu fui. Cheguei lá muito bem acompanhado pela minha colega de televisão Sônia Lancelotti. E fomos para o salão lotado, que é a plateia do teatro, só que sem as cadeiras. E a orquestra começou tocando “Cidade maravilhosa”. Porque baile que não abre com “Cidade maravilhosa” não é um baile sério, não é? E aí, logo em seguida e para minha surpresa, tocou “Cabeleira do Zezé”. Eu ainda não tinha ouvido a minha marchinha no salão. E quando tocou, o Municipal foi abaixo. Todo o mundo cantando nas frisas, nos camarotes e no salão, embaixo. “Sônia, não tô acreditando nisso!” Nem ela estava. “Agora, eu entendo por que o Manga me mandou vir pra cá...” E aí me entrevistaram com todo aquele papo que eu estava ganhando o carnaval e era o “rei do baile”. E cada vez que a orquestra tocava “Cabeleira do Zezé”, eu e Sônia corríamos para o bar. Nos bailes do Teatro Municipal, cerveja não era vendida, apenas whisky, que era muito caro, e champagne, um pouco mais barato. Então, nós fomos de champagne, brindando cada vez que tocava “Cabeleira do Zezé”. Só sei que naquele baile, “Cabeleira do Zezé” deve ter sido tocada uma trinta vezes e o prejuízo foi enorme. Lá pelas cinco da manhã, nosso dinheiro acabou e o pessoal da Excelsior já tinha ido embora. Voltamos do centro da cidade para Copacabana a pé. Sem dinheiro, a pé e felizes da vida.

(Do livro “Cabeleira do Zezé e outras histórias”, 
de João Roberto Kelly e André Weller)

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Meu relato pessoal

No começo de janeiro de 1964, fui um dos 80 jovens gaúchos selecionados, num total de quase 500, para servir no Núcleo da Divisão Aeroterrestre, a tropa de elite de paraquedistas do Exército Brasileiro. Em fevereiro daquele ano, em pleno domingo de carnaval, os 12 gaúchos, que foram lotados na 1ª Cia de Fuzileiros Aeroterrestres, resolveram pegar o trem da Central do Brasil, na estação de Marechal Hermes, para acompanhar o desfile das escolas de samba na avenida Presidente Vargas, no centro do Rio de Janeiro. No trem lotado, o povo cantava as marchinhas de carnaval que estavam tocando nas rádios e, uma delas era “Cabeleira do Zezé”. Grupos de jovens, fazendo um trenzinho em todos os vagões cantava a seguinte paródia da música:

“Olha a cabeleira do Zaru*, será que ele tem cabelo no cu?”

Nós, os gaúchos, ficamos espantados de como pessoas comuns num coletivo podiam cantar uma marchinha com letra pornográfica. Percebemos, então, que aquele era o espírito carioca que teríamos que entender dali pra frente.

Em 2015, num show no Rio Scenarium, na rua do Lavradio, na Lapa, o João Roberto Kelly apresentava um espetáculo cantando suas marchinhas. No intervalo, contei, resumidamente, essa história para ele.

Nilo da Silva Moraes

*Alziro Zarur, guia espiritual da Legião da Boa Vontade, tinha um programa religioso numa rádio do Rio, sempre nas madrugadas para consolar o povão aflito da cidade.


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