Minha neta, como toda a criança,
gosta de pintar, riscar com lápis; agora já lê e vai escrever muito, promete-me
ela.
Dias desses, frente ao papel
rasurado, impacientava-se por lhe faltar o lápis azul para dar últimos toques
às asas da borboleta. Remexe daqui, dali, e só encontra lápis sem ponta. “Mas,
quantos abandonados na caixa!”, disse-lhe. Assim ocorre por que ela, com suas
mãos ainda desajeitadas, ao desenhar ou pintar, força o grafite contra o papel,
quebrando-o. Para ela, a solução é jogar de lado o rompido e tomar outro.
Peguei de um e, com meu inseparável canivete, afilei sua ponta azul-marinho. E aproveitei
o momento para repetir a operação nos demais em desuso, talvez duas dúzias,
abandonados, despertando-me a satisfação de segurar, apontar, e remover
pequenas irregularidades, para deixá-los roliços. E dos cortes e das maravalhas
reacendia um aroma de madeira, característico de uma particular marca, a me
transportar aos tempos de guri.
Devo já ter contado, e repito sem
mentir, a alegria que tive ao ganhar do pai o primeiro lápis. Lembro que,
chegado da cidade, a mãe lhe indagou se trouxera para as crianças.
‒ Toma aqui.
‒ Um só?
‒ Corta ao
meio, metade para cada um.
A alegria inicial ficou um tanto
esvaecida pela determinação de nosso pai. Mas assim era preciso. Na carestia,
tudo comedido, era um tempo de máximo aproveitamento dos bens, sem o
desperdício de hoje. Éramos dois os filhos, minha irmã e eu, que iríamos aprender
a riscar e, talvez, escrever. Se dois são, consentiu a mãe, um pedaço para cada
um que eles ainda têm mãos pequenas. E, ajustando a faca, avaliou o meio,
marcou a posição do corte. E junto à secção fez as pontas, para que, no outro
extremo, permanecessem perfeitas as do famoso fabricante. E, com jeito, afinou
a madeira cheirosa, do mesmo aroma de agora. Metade pra mim, outra pra minha
irmã; que cuidássemos para não quebrar as pontas.
Hoje, por segurança, os apontadores,
para eliminar eventuais pequenos acidentes, que ocorriam com a manipulação de
giletes e canivetes, são rombudos; com lâminas de fio gasto, rompem o fraco
grafite, exigindo avanço nos afinamentos e reduzindo o tamanho do lápis. Na
época de guri, essas preocupações ainda não existiam; usava-se canivete para
tudo: apontar lápis, palito, raspar e falquejar forquilhas para fazer bodoque.
Empregavam-se as mãos nessas pequenas tarefas. Um tio, bem me lembro,
caprichoso marceneiro, com cepilho aprontava nossos lápis em cortes longos e
uniformes, uma beleza, e nós esfregávamos entre os dedos as cavaquinhas
desbastadas para despertar o suave e característico aroma da madeira.
Ainda agora, o perfume me transporta
àquela tarde, lá vão quase 70 anos, em que a faca rude partira o lápis ao meio.
Seja possivelmente da época minha predileção por tocos, por seu significado,
com eles não há desperdício e podem ser alongados com tubos de taquara fina.
Toda a vez que se corta, é o mesmo aroma, e vem a lembrança de antigamente, de
Dom Pedrito, do imenso campo espraiado, quase esquecido. Tudo imenso para nossa
visão de infância; tudo parecia ser grande, a mangueira, o mato, as árvores, o
gado, o tempo, a espera, e até a sanga que transbordava nas épocas de cheia.
Nestes tempos atuais, continuo a
levar comigo um toco no bolso; pouco espaço exige. Serve para assinalar,
marcar, não vaza tinta nem mancha a roupa; é auxílio a registrar o que a
memória, talvez, já não mais contaria.
Texto de Celito
M. Brugnara – engenheiro - 25 fevereiro de 2015
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