sábado, 4 de junho de 2016

Momento num café

Momento numa biblioteca

(Excerto)*

Ricardo Silvestrin

(Poeta)


Momento num café

Manuel Bandeira

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.

Este poema é cinema.

Há um olhar-câmera que mostra as cenas. Vai passando o cortejo do enterro pela rua. Um grupo de homens no café, na calçada, tira o chapéu num gesto habitual, ritualizado, de respeito. São tomados de surpresa, interrompidos na conversa sobre coisas corriqueiras do dia a dia. Não os distinguimos individualmente. É uma panorâmica, um passeio de câmera que os flagra tirando o chapéu e, quem sabe, recolocando-o e voltando à conversa. O olho-câmera encontra, no grupo, um homem que contrasta com os outros e fecha-se o foco nele. Esse observa pensativo o caixão enquanto seu chapéu segue em sua mão.

E, como, além da conversa, é poesia, há dois comentários no poema, um para cada cena. Na primeira, o poeta nos diz que os homens saudavam o morto distraídos, absortos na vida. Na segunda, que o homem que se demorava olhando o esquife sabia que a vida é traição.

Muito pensei sobre esse verso. Um dia me dei conta: sim, a gente nasce, mas vai morrer. Aí está a traição. Confiamos na vida, mas ela, inevitavelmente, nos trairá. Também, em seguida, há a ideia de que o corpo que morreu, a matéria que passava, está enfim liberto da alma. A alma, a psiquê, o que quer que mova esse corpo, extingue-se livrando-o dessa agitação feroz sem finalidade que é a vida.

Em treze versos, bandeira nos revela uma visão sobre a vida e sobre a morte nesse encontro entre as duas, por um momento, num café. Não há uma rima. Os versos não têm um número de sílabas regular, uma métrica fixa. Há sim essa conquista formal dos poetas da sua geração de construir o poema pelo ritmo da fala, com versos longos e curtos. Uma fala prosaica, carregada de poesia.


*Excerto: parte do texto.




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