terça-feira, 30 de setembro de 2014

O Ambiente Exige Respeito

Gafieira é, sobretudo, uma casa onde se pratica a dança, no sentido mais genuíno, e se mantém e se alimenta uma tradição popular que atravessa décadas. Um espaço de maestria dos dançarinos, que já exibem e exercitam a arte de dançar.



Estatuto da Gafieira

Billy Blanco

Moço,
Olha o vexame,
O ambiente exige respeito,
Pelos estatutos
Da nossa gafieira,
Dance a noite inteira
Mas dance direito.

Aliás,
Pelo artigo 120,
O distinto que fizer o seguinte:
Subir na parede;
Dançar de pé pro ar;
Debruçar-se na bebida sem querer pagar;
Abusar da umbigada de maneira folgazã,
Prejudicando hoje
O bom crioulo de amanhã,
Será distintamente censurado,
Se balançar o corpo
Vai pra mão do delegado.
Ta bem, moço?
Olha o vexame, moço!

Ao compor o samba Estatuto de Gafieira, Billy Blanco não estava inventando nada. Transpunha para  a pauta musical a realidade dos salões populares, conhecidos como gafieiras, e que seguem regulamento rígido, obedecidos pelos frequentadores. Geralmente gente humilde, mas excelente dançarinos, samba nas veias, na alma e nos pés, transformando o ritmo na mais pura expressão corporal, para inveja de muitos bailarinos e bailarinas famosos que, depois de anos de estudo em academias, não conseguem a performance natural e atávica dos dançarinos de gafieiras.

Antes de mais nada, por que gafieira? Onde teria nascido e, ainda qual o significado da palavra? Segundo o cronista e historiador Jota Efegê, quem cunhou a palavra foi o também cronista Romeu Arede, que se assinava Picareta, entre os anos 20 e 30. O tal Picareta misturou o francesismo gafe (indiscrição involuntária, transgressão de regras de etiqueta social) com a terminação eira (que dá ideia de sequência), resultando, assim, uma designação para o local onde se praticam, seguidamente, indiscrições e erros de etiqueta.

Como até a metade do século passado só existiam clubes fechados, para determinado número de sócios, quem a eles não pertencesse e quisesse dançar, somente poderia fazê-lo nos chamados “zangus”, bailes populares, sem entrada paga. Tal situação originou a primeira gafieira da história, aberta no Rio de Janeiro, em 1847/1848, por Dª Francisca Pacheco Silva, que solicitou licença para instalar sala de bailes, com ingresso cobrado, na Rua da Alfândega, 327.

Por isso, Júlio Simões, uma das maiores autoridades no assunto – como fiscal de salão da famosíssima Kananga do Japão, durante muitos nãos, e fundador da Elite*, a mais tradicional gafieira do Rio de Janeiro –, com conhecimento de causa, definia gafieira como “sinônimo de entrada paga e mistura de raça”. A Kananga do Japão, a mais organizada e comentada gafieira dos anos 10 e 20, ficava na Cidade Nova e devia o fastígio ao trabalho de seu presidente, José Constantino da Silva, o Juca da Kananga, que, entre outros méritos musicais, era tio de Elizeth Cardoso.

Às gafieiras ia-se para dançar. Registradas e conhecidas como Sociedade Familiar Dançante, tinham sempre um fiscal todo-poderoso que se encarregava de manter a moral e os bons costumes no salão. Cabia a ele, também, dar chance às damas que pouco (ou nada) dançavam, quando emitia a ordem: “Olha o belo seco!”, para que as mulheres tirassem os homens para dançar (seco era uma corruptela da palavra “sexo”...). Ou melhorar as finanças da casa, ao gritar “Damas ao bufete!”, obrigando os cavalheiros a pagarem um refrigerante ou algo de comer às companheiras.

Nas pistas enceradas ou parafinadas, os pares deslizavam – e ainda deslizam -,  em geral, ao som de excelentes orquestras e ótimos cantores. No Rio de Janeiro, além da Elite, ficaram famosas outras como a Estudantina*, a O Prazer É Nosso, a Fogão. Em São Paulo, reinou, durante muitos anos, a Som de Cristal, mas nada lhe ficaram devendo a Caçamba, a Garitão, a Lilás. Todas elas, porem, tinham seus estatutos, que deveriam ser cumpridos à risca. Os itens mais importantes diziam que:

· O fiscal de salão é o responsável pela boa ordem no salão e fora dele. Ele é o diplomata, mas rígido; educado, mas rigoroso. É intimorato em seu ofício.

· Palavrão, nem de brincadeira. Cuspir no chão, nunca.

· É proibida a intimidade excessiva ou o afago físico, nas contradanças. Beijos, só discretos e relâmpagos. Rosto colado pode, mas só dançando por dançar.

· Cavalheiros devem dançar com o lenço na mão, para evitar que o suor possa manchar os vestidos das damas.

· A compostura manda dançar com o paletó abotoado.

· Cavalheiro inteligente não provoca confusão, porque “urubu pra cantar demora”, até explicar quem tem razão, todos já brigaram.

· Embriagado não sobe a escada, quem se embriaga no salão, desce.

· Para o gafieirense, o fundamental é dançar.


Flagrante carioca

Da série “Os Grandes Sambas da História”

* Gafieira Elite, Rua Frei Caneca, 4 – Centro do Rio de Janeiro. 

*. Gafieira Estudantina, Praça Tiradentes – Centro do Rio de Janeiro. (Fechada)


Estudantina - Praça Tiradentes

P.S. O Rio terá suas raízes retomadas com a inauguração da gafieira na Praça Tiradentes. A casa, inaugurada em 1928, funcionava como um espaço para dança de salão desde 1942, e foi fechada ano passado devido a dívidas de aluguel. O valor soma R$ 5 milhões. O espaço ganhará um novo nome: Nova Gafieira.

O lugar que já foi palco para nomes como Maria Bethânia e Jamelão é lembrado com carinho por quem já passou por ali.


Nenhum comentário:

Postar um comentário