Gafieira é, sobretudo, uma casa onde se pratica a
dança, no sentido mais genuíno, e se mantém e se alimenta uma tradição
popular que atravessa décadas. Um espaço de maestria dos dançarinos, que
já exibem e exercitam a arte de dançar.
Estatuto da Gafieira
Billy Blanco
Moço,
Olha o vexame,
O ambiente exige respeito,
Pelos estatutos
Da nossa gafieira,
Dance a noite inteira
Mas dance direito.
O ambiente exige respeito,
Pelos estatutos
Da nossa gafieira,
Dance a noite inteira
Mas dance direito.
Aliás,
Pelo artigo 120,
O distinto que fizer o seguinte:
Subir na parede;
Dançar de pé pro ar;
Debruçar-se na bebida sem querer pagar;
Abusar da umbigada de maneira folgazã,
Pelo artigo 120,
O distinto que fizer o seguinte:
Subir na parede;
Dançar de pé pro ar;
Debruçar-se na bebida sem querer pagar;
Abusar da umbigada de maneira folgazã,
Prejudicando
hoje
O bom crioulo de amanhã,
O bom crioulo de amanhã,
Será
distintamente censurado,
Se balançar o corpo
Vai pra mão do delegado.
Ta bem, moço?
Olha o vexame, moço!
Se balançar o corpo
Vai pra mão do delegado.
Ta bem, moço?
Olha o vexame, moço!
Ao compor o samba Estatuto de Gafieira, Billy Blanco não
estava inventando nada. Transpunha para
a pauta musical a realidade dos salões populares, conhecidos como
gafieiras, e que seguem regulamento rígido, obedecidos pelos frequentadores.
Geralmente gente humilde, mas excelente dançarinos, samba nas veias, na alma e
nos pés, transformando o ritmo na mais pura expressão corporal, para inveja de
muitos bailarinos e bailarinas famosos que, depois de anos de estudo em
academias, não conseguem a performance
natural e atávica dos dançarinos de gafieiras.
Antes de mais nada, por que gafieira?
Onde teria nascido e, ainda qual o significado da palavra? Segundo o cronista e
historiador Jota Efegê, quem cunhou a palavra foi o também cronista Romeu
Arede, que se assinava Picareta, entre os anos 20 e 30. O tal Picareta misturou
o francesismo gafe (indiscrição
involuntária, transgressão de regras de etiqueta social) com a terminação eira (que dá ideia de sequência),
resultando, assim, uma designação para o local onde se praticam, seguidamente,
indiscrições e erros de etiqueta.
Como até a metade do século passado
só existiam clubes fechados, para determinado número de sócios, quem a eles não
pertencesse e quisesse dançar, somente poderia fazê-lo nos chamados “zangus”,
bailes populares, sem entrada paga. Tal situação originou a primeira gafieira
da história, aberta no Rio de Janeiro, em 1847/1848, por Dª Francisca Pacheco
Silva, que solicitou licença para instalar sala de bailes, com ingresso
cobrado, na Rua da Alfândega, 327.
Por isso, Júlio Simões, uma das
maiores autoridades no assunto – como fiscal de salão da famosíssima Kananga do
Japão, durante muitos nãos, e fundador da Elite*, a mais tradicional gafieira
do Rio de Janeiro –, com conhecimento de causa, definia gafieira como “sinônimo
de entrada paga e mistura de raça”. A Kananga do Japão, a mais organizada e
comentada gafieira dos anos 10 e 20, ficava na Cidade Nova e devia o fastígio
ao trabalho de seu presidente, José Constantino da Silva, o Juca da Kananga,
que, entre outros méritos musicais, era tio de Elizeth Cardoso.
Às gafieiras ia-se para dançar.
Registradas e conhecidas como Sociedade Familiar Dançante, tinham sempre um
fiscal todo-poderoso que se encarregava de manter a moral e os bons costumes no
salão. Cabia a ele, também, dar chance às damas que pouco (ou nada) dançavam,
quando emitia a ordem: “Olha o belo seco!”, para que as mulheres tirassem os
homens para dançar (seco era uma
corruptela da palavra “sexo”...). Ou melhorar as finanças da casa, ao gritar
“Damas ao bufete!”, obrigando os cavalheiros a pagarem um refrigerante ou algo
de comer às companheiras.
Nas pistas enceradas ou parafinadas,
os pares deslizavam – e ainda deslizam -,
em geral, ao som de excelentes orquestras e ótimos cantores. No Rio de
Janeiro, além da Elite, ficaram famosas outras como a Estudantina*, a O Prazer
É Nosso, a Fogão. Em São
Paulo , reinou, durante muitos anos, a Som de Cristal, mas
nada lhe ficaram devendo a Caçamba, a Garitão, a Lilás. Todas elas, porem,
tinham seus estatutos, que deveriam ser cumpridos à risca. Os itens mais
importantes diziam que:
· O
fiscal de salão é o responsável pela boa ordem no salão e fora dele. Ele é o
diplomata, mas rígido; educado, mas rigoroso. É intimorato em seu ofício.
·
Palavrão, nem de brincadeira. Cuspir no chão, nunca.
· É
proibida a intimidade excessiva ou o afago físico, nas contradanças. Beijos, só
discretos e relâmpagos. Rosto colado pode, mas só dançando por dançar.
·
Cavalheiros devem dançar com o lenço na mão, para evitar que o suor possa
manchar os vestidos das damas.
· A
compostura manda dançar com o paletó abotoado.
·
Cavalheiro inteligente não provoca confusão, porque “urubu pra cantar demora”,
até explicar quem tem razão, todos já brigaram.
·
Embriagado não sobe a escada, quem se embriaga no salão, desce.
· Para o gafieirense, o fundamental é dançar.
Da série “Os Grandes Sambas da História”
* Gafieira Elite, Rua Frei Caneca, 4 –
Centro do Rio de Janeiro.
*. Gafieira Estudantina, Praça
Tiradentes – Centro do Rio de Janeiro. (Fechada)
Estudantina - Praça Tiradentes
P.S. O Rio terá suas raízes retomadas
com a inauguração da gafieira na Praça Tiradentes. A casa, inaugurada em 1928,
funcionava como um espaço para dança de salão desde 1942, e foi fechada ano
passado devido a dívidas de aluguel. O valor soma R$ 5 milhões. O espaço
ganhará um novo nome: Nova Gafieira.
O lugar que já foi palco para nomes como Maria Bethânia e
Jamelão é lembrado com carinho por quem já passou por ali.
Nenhum comentário:
Postar um comentário