Calma
Marcel Souto Maior*
Calma, porque no quintal lá fora
os pássaros usam o pote d′água dos cachorros para se banhar.
Calma, porque tem sobrado mais
tempo para misturar temperos, errar e certar nas panelas e frigideiras das refeições
em família, e nunca falta sal.
Calma, porque verdades incômodas
têm vindo à tona, pelo mundo afora, e todas têm a ver com uma instrução secreta
impressa em nossas peles: “Cuidado, frágil.”
Calma, porque livres do alvoroço
dos visitantes, ursos pandas do zoológico do Japão conseguiram acasalar pela
primeira vez em 10 anos.
Calma, porque nesta semana uma
fotógrafa registrou um longo arco-íris horizontal nos céus de Washington, e
outra flagrou corpos seminus, na fachada do prédio em frente, invisíveis uns
aos outros, mas unidos em torno do mesmo objetivo: o de captar o sol à beira
das janelas.
Calma, porque a Terra tem emitido
murmúrios antes inaudíveis, atribuídos a fake news ou a delírio coletivo.
Verdade ou não, o melhor é prestar atenção.
Calma, porque o governo que
abomina expressões como “vulnerabilidade social” e “desigualdade econômica”
teve de fazer as contas de quantos brasileiros deverão receber auxílio
emergencial e reconhecer a ordem de grandeza deste contingente: 100 milhões!
Calma, porque conceitos antigos
que pareciam extintos na pseudoera da Globalização têm emergido das sombras com
a força dos fatos: no fechamento das fronteiras, a prova de que ainda somos
divididos entre “nós e os outros” e, nos vagões lotados do transporte público, o
retrato da desigualdade entre os que podem e os não podem ficar em casa.
Calma, porque o real significado
de slogans como America First
revela-se imperativo em ações como o confisco de máscaras e respiradores
destinados a outras nações.
Calma, porque, no escuro, sempre
podem surgir iluminações.
Calma, por que pressa para quê?
Calma, porque um mundo novo
sempre pode surgir nos escombros da desconstrução.
Calma, porque nas leituras do dia
a dia, sempre dá para tropeçar em frase como esta: “É que um mundo todo vivo
tem a força de um inferno” (Clarice Lispector).
Um mundo em carne viva. É o que
temos.
Calma, porque hoje,
excepcionalmente, não há dia útil. Ou é o contrário?
Calma, porque os cães nunca
passaram tanto tempo com seus humanos. E isto é bom.
Cala, porque o imprevisível
derrotou o planejado; o impossível venceu o inevitável e, até segunda ordem,
ficam revogadas todas as projeções em contrário.
*****
(Da crônica de
Cláudia Tajes, no Caderno Donna, de Zero Hora)**
*Marcel Souto Maior, Brasília,
2 de abril
de 1966,
é um jornalista,
escritor, roteirista e diretor brasileiro, autor de dez livros. Tem se
notabilizado pelos livros sobre Espiritismo
e o médium
Chico Xavier.
Autodeclarado ateu, seu livro “As Vidas de Chico Xavier” baseou o filme Chico Xavier (2010) e seu livro “Por trás
do véu de Ísis” baseou o Calma, porque no quintal lá fora
os pássaros usam o pote d′água dos cachorros para se banhar.
** Da crônica dominical da Cláudia
Tajes, foi retirado somente o texto transcrito acima.
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