segunda-feira, 27 de abril de 2020

Muita calma nessa hora

Calma

Marcel Souto Maior*


Calma, porque no quintal lá fora os pássaros usam o pote d′água dos cachorros para se banhar.

Calma, porque tem sobrado mais tempo para misturar temperos, errar e certar nas panelas e frigideiras das refeições em família, e nunca falta sal.

Calma, porque verdades incômodas têm vindo à tona, pelo mundo afora, e todas têm a ver com uma instrução secreta impressa em nossas peles: “Cuidado, frágil.”

Calma, porque livres do alvoroço dos visitantes, ursos pandas do zoológico do Japão conseguiram acasalar pela primeira vez em 10 anos.

Calma, porque nesta semana uma fotógrafa registrou um longo arco-íris horizontal nos céus de Washington, e outra flagrou corpos seminus, na fachada do prédio em frente, invisíveis uns aos outros, mas unidos em torno do mesmo objetivo: o de captar o sol à beira das janelas.

Calma, porque a Terra tem emitido murmúrios antes inaudíveis, atribuídos a fake news ou a delírio coletivo. Verdade ou não, o melhor é prestar atenção.

Calma, porque o governo que abomina expressões como “vulnerabilidade social” e “desigualdade econômica” teve de fazer as contas de quantos brasileiros deverão receber auxílio emergencial e reconhecer a ordem de grandeza deste contingente: 100 milhões!

Calma, porque conceitos antigos que pareciam extintos na pseudoera da Globalização têm emergido das sombras com a força dos fatos: no fechamento das fronteiras, a prova de que ainda somos divididos entre “nós e os outros” e, nos vagões lotados do transporte público, o retrato da desigualdade entre os que podem e os não podem ficar em casa.

Calma, porque o real significado de slogans como America First revela-se imperativo em ações como o confisco de máscaras e respiradores destinados a outras nações.

Calma, porque, no escuro, sempre podem surgir iluminações.

Calma, por que pressa para quê?

Calma, porque um mundo novo sempre pode surgir nos escombros da desconstrução.

Calma, porque nas leituras do dia a dia, sempre dá para tropeçar em frase como esta: “É que um mundo todo vivo tem a força de um inferno” (Clarice Lispector).

Um mundo em carne viva. É o que temos.

Calma, porque hoje, excepcionalmente, não há dia útil. Ou é o contrário?

Calma, porque os cães nunca passaram tanto tempo com seus humanos. E isto é bom.

Cala, porque o imprevisível derrotou o planejado; o impossível venceu o inevitável e, até segunda ordem, ficam revogadas todas as projeções em contrário.

*****

(Da crônica de Cláudia Tajes, no Caderno Donna, de Zero Hora)**

*Marcel Souto Maior, Brasília, 2 de abril de 1966, é um jornalista, escritor, roteirista e diretor brasileiro, autor de dez livros. Tem se notabilizado pelos livros sobre Espiritismo e o médium Chico Xavier. Autodeclarado ateu, seu livro “As Vidas de Chico Xavier” baseou o filme Chico Xavier (2010) e seu livro “Por trás do véu de Ísis” baseou o Calma, porque no quintal lá fora os pássaros usam o pote d′água dos cachorros para se banhar.

** Da crônica dominical da Cláudia Tajes, foi retirado somente o texto transcrito acima.



Nenhum comentário:

Postar um comentário