O que há de mais importante na
biografia “Elis Regina ‒ Nada Será Como
Antes” (Master Books, 423 páginas), do jornalista Júlio Maria, é o modo
como mostra, a partir de análises feitas por músicos ou por meio de seus
próprios comentários, como Elis Regina era uma cantora diferenciada,
possivelmente a maior do Brasil (o biógrafo Ruy Castro é o único que considera
Carmen Miranda a maior cantora do país). O músico e compositor Edu Lobo, ao
vê-la cantar pela primeira vez, “gelou com algo que só os músicos percebiam.
Elis tinha um senso harmônico de instrumentista. Sabia quais acordes ficariam
melhores, com ou sem acidentes, invertidos ou não, e cobrava seus músicos para
que os encontrassem na forma em que sua intuição pedia. ‘Esse não está bom, é
quase isso’, dizia aos pianistas”.
O “timbre e” a “percepção de conjunto”
de Elis Regina foram notados rapidamente pelos músicos. A cantora era, com sua
voz possante, uma verdadeira instrumentista. O pianista Adylson Godoy, o Dico,
impressionou-se, desde o início, com sua “percepção harmônica instintiva”.
Amilton Godoy, pianista de formação
erudita do Zimbo Trio, ficou mesmerizado com a percepção musical de Elis
Regina. “Ela cantou uma linha melódica em sete por quatro, um tempo quebrado
demais para a cabeça de alguém que nem partitura sabia ler. Amilton sacou que
aquela cabeça não funcionava como a de um ‘canário’. (…) Elis, o quarto
instrumentista do grupo, tinha uma interação premonitória com o piano, o baixo
e a bateria de Rubinho, com quem se entendia até nas frases mais tortas”.
O maestro Chiquinho de Moraes
impressionou-se ao ouvir a cantora. “Chico sentia estar ao lado de uma cantora
com poderes sobrenaturais assim que recebeu Elis em seus primeiros ensaios. As
músicas nunca eram passadas duas vezes. Quanto faltava tempo, nem ensaio havia.
Elis preferia que seus convidados usassem os minutos que antecediam o programa
para treinarem com orquestra. Ela se garantiria ao vivo”, conta Júlio Maria.
Músicos, às vezes, tentavam
ludibriar Elis Regina, com o objetivo de verificar se tinha condições técnicas
de perceber o logro. A cantora percebia e entrava na onda. Musicalmente, era
como Ella Fitzgerald, que tinha um excelente ouvido para conectar-se à
técnica-arte dos músicos.
Júlio Maria conta que, como
vários artistas do primeiro time da música, Elis Regina era extremamente
competitiva. Embora consciente de seu enorme talento, e de sua superioridade
vocal, fazia o impossível para colocar as outras cantoras, famosas ou não, em seus
“devidos lugares”. Alaíde Costa, Nana Caymmi, Maricenne Costa, Claudette Soares
e Nara Leão sofreram com a crueldade de Elis Regina.
Ao cantar no programa “Fino da
Bossa” (depois, só “Fino”), Alaíde Costa, cantora consagrada, começou a ouvir a
plateia gritar: “Elis! Elis!” Não se provou, mas parecia orquestrado por Elis
Regina.
Grávida, Alaíde Costa passou mal e,
levada a um hospital, o médico recomendou repouso. A cantora rejeitou a
orientação e seguiu para a TV Excelsior, onde cantaria “Morrer de Amor”. Ao
encontrá-la, Elis Regina disse: “Acabei saindo ontem antes de o seu show
terminar. E aí? Eles continuaram chamando meu nome?” Tensa, Alaíde Costa passou
mal e perdeu o bebê.
Claudette Soares, celebrada em
meados da década de 1960, cantava no “Fino da Bossa”. O diretor do programa,
Manoel “Maneco” Carlos (mais tarde, novelista da TV Globo), reuniu a cantora e
Elis Regina para discutir o que cantariam. Claudette Soares alfinetou: “Maneco,
será que a Elis não pode cantar uma música minha?” Irritada, Elis Regina disse:
“Claro que eu canto”. A rival atacou com um FAL: “Mas meu tom é mais baixo do
que o seu. Será que o tom original vai dar pra você?” Elis Regina sacou a
metralhadora: “Eu canto em qualquer tom, meu bem. Qual você quer?”. As duas
cantaram “Eu Só Queria Ser” ‒ e muito bem, segundo Júlio Maria.
Maricenne Costa, embora respeitada
pelos músicos da bossa nova, não agradava Elis Regina. Convocada para cantar na
Record, ouviu Elis Regina “falando alto com Maneco: ‘Até cantora da noite agora
vem fazer o ‘Fino’?” Maricenne Costa contra-atacou: “Cantora da noite
brasileira e paulista que vai cantar nos Estados Unidos”. Não houve reação.
Convidada para cantar no “Fino”, Nana
Caymmi, grávida de quatro meses, deixou a Bahia e dirigiu-se ao estúdio da
Record. Lá, percebeu que Elis Regina conversava discretamente com o empresário
Marcos Lázaro. Este disse que a filha de Dorival Caymmi não cantaria mais, pois
o “o programa” estava “completo”. Tudo indica que havia sido vetada por Elis
Regina.
A próxima encrenca foi com Maysa.
“Fiquei sabendo que você me imita. Imita minha voz que eu quero ver”, desafiou
a cantora. Elis Regina não se fez de rogada: “Maysa ouviu a imitação e saiu
sorrindo”. Depois, o tempo fechou. Maysa chegou a denunciar que havia sido
dopada pela rival para não cantar no Festival Internacional da Canção.
Na boate 706, Maysa e Elis Regina
trocaram farpas. A primeira torpedeou: “Sua gauchinha de merda”. A segunda
devolveu balas explosivas: “Cala a boca, sua pinguça”. Maysa tentou jogar um
garrafa em Elis Regina ,
mas Roberto Menescal a segurou.
A voz da mineira Claudia (Maria das
Graças) “era algo de entarrecer”. Maysa e Elizeth Cardoso pararam um ensaio
para ouvi-la. Porém, Ronaldo Bôscoli e Miele decidiram organizar um show para
Claudia com o título de “Quem Tem Medo de Elis Regina?” A cantora não quis e o
nome foi modificado para “Claudia Não se Aprende na Escola”.
Porém, quando compareceu para cantar
no “Fino”, foi tratada com crueldade por Elis Regina logo na apresentação.
“Agora, eu quero apresentar a vocês uma menina que começou a carreira aqui no
meu programa. O nome dela é Maria das Graças e ela quer agora fazer um show no
Rio de Janeiro chamado ‘Quem Tem Medo de Elis Regina?’” A plateia vaiou Claudia
“por cinco minutos”.
Esvaziada pelas críticas duras de Elis
Regina, Claudia passou fome no Rio de Janeiro. “Quando a fome chegava, tomava
água e ia à praia secar-se no sol para distrair o estômago”, anota Julio Maria.
No “Fino da Bossa”, Elis Regina e
Jair Rodrigues fizeram uma parceria musical de sucesso. Apesar das encrencas
habituais, a cantora gostava dele. Mas, “um dia, Elis entrou na sala de Maneco
com uma solicitação delicada: queria que Jair Rodrigues fosse demitido”. Maneco
não o despediu e ficou por isso mesmo; a cantora nem cobrou mais o afastamento
do colega. Ela era temperamental.
Júlio Maria escreve que a cantora
defendia os amigos com coragem e, apesar do mau humor ‒ que variava rapidamente
para bom humor ‒, era apreciada pelos músicos.
As histórias diminuem Elis Regina
como cantora? De maneira alguma. Mas reduz sua imagem meio angelical que a
morte (overdose de cocaína), aos 36 anos, e, sobretudo, o enorme talento lhe
conferem. Elis Regina persiste como a maior cantora brasileira de todos os
tempos. Como pessoa, era contraditória ‒ como todos nós.
A biografia foi lida por dois filhos
de Elis Regina ‒ a cantora Maria Rita não quis ler antes do lançamento ‒, mas
não é, como se viu acima, uma hagiografia. Elis fica maior do que já é, mas
suas contradições são apontadas ‒ com o contexto apropriado ‒ sem dourar a
pílula.
João Gilberto é ameaçado e o veto de Tom Jobim.
Há histórias muito boas, como a do
dia em que Tom Jobim
vetou Elis Regina, optando por Dulce Nunes, mulher de um amigo, o maestro Bené
Nunes. Convidado para cantar no “Fino da Bossa”, João Gilberto “não queria sair
do camarim”. Um segurança mostrou-lhe uma arma e ameaçou: “Vai descer ou não
vai?” O artista mais ranheta do país cantou.
No prefácio, um dos mais importantes
críticos de música do país, Zuza Homem de Mello, sugere que se trata da
“biografia definitiva”. Não é. Pelo simples motivo de que não há biografia
definitiva de nenhuma personalidade.
O que se deve dizer é que, depois de
duas biografias consistentes, “Furacão Elis”, de Regina Echeverria, e “Elis
Regina ‒ Nada Será Como Antes”, estão lançadas as bases para novas biografias e
estudos, por exemplo, explorando de maneira mais detida a agudeza e
especificidade de seu canto ‒ e, de fato, Julio Maria supera Regina Echeverria
na discussão da cantora sem si ‒ e mesmo certas penumbras de sua vida.
O que se pode sublinhar é que se
trata mesmo de uma biografia de excelente qualidade. Agora, para ilustrá-lo, é
equivocado insinuar que a biografia escrita por Regina Echeverria é “ruim”. Não
é. Mas, escrita em 1985, três anos depois da morte da cantora ‒ quer dizer,
praticamente em cima da hora ‒, deixou lacunas. Porém, ao mesmo tempo, lançou
as bases para a biografia de Julio Maria, publicada 30 anos depois.
(Do Jornal Opção)
Frases de Elis Regina
“(...) desde 1966 as pessoas que
fazem música, que interpretam música, que executam música, são sempre as
mesmas. É o circo do elefantinho que está armado. E em processo de
antropofagia. Alas se entredevorando, numa flagrante e evidente e palpável luta
pelo poder. Só.”
“Quando descobrirem que estou
verde, já estarei amarela. Eu sou do contra. Não vão me dirigir nunca.”
Fonte: Folha de
S.Paulo/Folhetim, junho, 1979
“Eu estava enganada a respeito de
algumas coisas, como participação de tevê e rádio, até resistindo a uma série
de pressões. Como se a gente acreditasse, com isso, poder mudar o mundo,
quando, na verdade, a gente não vai mudar porcaria nenhuma, muito menos se a
gente não estiver dentro do mundo. Sendo um ermitão, por exemplo, é muito mais
difícil poder fazer alguma coisa do que estando enfiado ali no inferno. E uma
vez no inferno, é muito melhor estar no centro do inferno.”
Fonte: revista Música,
1979
Trecho de 'Elis Regina – Nada será como antes'
Primeiro
capítulo
Cesar Camargo Mariano, pai de Pedro,
passou por ele sem muitos carinhos. Seus olhos estavam tristes e vermelhos, sua
barba feita e um braço enfaixado. De tudo, o mais estranho era o fato de estar
ali pela primeira vez em pouco mais de seis meses, desde que havia se separado
de Elis. O menino dirigiu-se aos adultos para saber o que havia de errado.
“Nada, Pedro, vai brincar”, disse uma das empregadas. O telefone da casa tocou
e seu irmão João atendeu. Era o jornalista de uma emissora de rádio. “Bom-dia.
Por favor, é da casa da Elis Regina?” “É, mas ela não está”, respondeu o
garoto. “É só para confirmar: soubemos que ela morreu nesta manhã, é isso
mesmo?” Com a maturidade de um menino de 11 anos, João sorriu sem graça daquilo
que lhe pareceu piada, desligou o telefone e voltou a brincar. Pedro passou
pela sala, ligou a TV e se sentou para assistir a um desenho no instante em que
um plantão do Jornal Hoje, da Globo, começou a lhe dar as respostas que os
adultos haviam negado.
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