sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Tempos modernos

(5 histórias plurianuais)

Luis Pimentel*

Foi assim


A mulher saiu para comprar pão. O filho foi comprar seus cigarros. A empregada começou a preparar seu café. A filha desceu para comprar o jornal. Tudo certinho, como em todos os domingos.

Tomou café fazendo estalinhos irritantes com a ponta da língua, o que sempre fazia. Acendeu um cigarro e começou a mastigar o palito de fósforos, aquele vício insuportável. Abriu o jornal enviesado como de costume, começando logo aquela barulheira infernal de páginas mal dobradas. Leu a primeira manchete, tossindo e escarrando no meio da sala, o que ninguém suportava mais.

Depois fechou os olhos, de um suspiro inoportuno e morreu ali mesmo, como todos desejavam há muito tempo.

*****

A Senhora


Que eu era isso, que eu era aquilo e que tratasse logo de pagar a porra do aluguel do quartinho até logo mais, ela disse. Assim mesmo: “a porra do aluguel”, com o dedinho gordo apontando para mim. – Se não vai ter! – berrou, enquanto batia a porta da pocilga que chamava de quarto e descia as escadas cuspindo escorpiões.

Foi tempo de eu pegar o porrete que substituía a tranca e descer atrás, cuspindo fogo e ferro e uma mistura infernal de sabores que me perseguiam há muito tempo.

Bastou uma porretada certeira, bem na nuca, e o sangue mudou toda a pintura do corredor. Miolo de velha rabugenta e pedaços de ossos grudaram no corrimão.

Uma festa de arromba como nos velhos tempos, quando eu ainda arrombava mesmo e botava pra quebrar.

Bem que ela avisou que ia ter.

*****

Na subida do morro


O primeiro tiro, na primeira viela da subida do morro, acertou o elemento que corria desesperado, tudo indicando que tinha culpa no cartório.

O responsável pela operação policial explicou que nessa hora tem que atirar mesmo, até porque não dá tempo de perguntar se o suspeito é ou deixa de ser inocente.

Só depois, dias depois, no decorrer das investigações, descobriram que o elemento em questão e já enterrado não passava de um molecote de 14 anos que correu porque se borrava de medo da polícia.

O medo, vocês sabem, traz o desespero e faz a gente correr mesmo. E que o moleque, soube-se depois também, era doente mental e acordava gritando no meio da noite “são eles, são eles e vão nos matar”.

Também puxava de uma perna, o molecote, o que aumentava mais ainda a aflição na hora da correria.

Mas aí, disse o sargento responsável pela operação, já era tarde.

*****

Aprontos


A mulher Irene da Silva disse que o marido Aristides Silva, vulgo Trambolho, saiu aquela manhã de casa, na Favela do Rato Molhado, chutando a alma da mãe e dizendo que ia descer o morro e “aprontar um bocado”.

Quando vizinhos bateram na porta, no finalzinho do dia, carregando o corpo de Trambolho todo crivado de balas, Irene estranhou:

– Eu não sabia que era esse o apronto a que o infeliz se referia.

*****

Inspiração


No caminho mais escuro do parque de diversões:

– E depois de conseguir o que quer, você casa comigo?

– Claro, querida.

– Jura?

– Pela minha mãe mortinha.

– Nem, assim eu acredito. Jura mais.

– Quero que um carro me atropele. Que eu fique todo desengonçado, que nem aquele sujeito ali.

Aleijadinho que passa, vendendo laranja:

– Vai se inspirar na mãe, tarado filho da puta!

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(Textos da Revista “Bundas”, setembro de 1999)

*Luis Pimentel é escritor e jornalista, 
nasceu em Feira de Santana, Bahia, em 1953,
e desde 1975 reside no Rio de Janeiro.




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