Paulo Mendes
Desenho de Lauren De Bacco
Ah, parceiro, se este rosto
ressecou, rachou e agora mostra sulcos como uma taquara velha exposta ao sol,
eu te garanto, não foi por falta de água. Esta cara, coitada, foi irrigada diariamente
pelas chuvas doces e pelas lágrimas salobras. Espera, espera um pouco, talvez a
fuça tenha se ressecado por isso mesmo, por tanto aguaceiros frios nas
invernias e por tantas soalheiras nos janeiros escaldantes. Sofreu muitos
desenganos, enfrentou garoas com vento gelado e, por isso, ficou assim. Não a
vejo há tempo, que nem me conheço mais, nem quero ver o meu outro, o de carne e
osso, como fazia nas tardes de antigamente. Eu me via no espelho dos açudes,
das sangas, ainda guri, e enxergava uma face jovem, sorridente e feliz. Uma
cabeça cheia de planos, plena de sonhos. E hoje, confesso, já não os procuro,
eu os temo, esses espelhos, pois tenho medo que a imagem refletida mostre-me o
verdadeiro rosto de minha alma.
Com o passar dos dias reconheço que
perdi o viço e um jeito matreiro de olhar os infinitos, de vasculhar os
escuros, de pressentir os avessos. Sinto falta das coisas amadas que perdi, dos
amigos que se foram, do calor do fogo de chão, dos dedos de minha mãe alisando
meus cabelos, das bolitas, das pandorgas, do gosto da pitanga madura, do cheiro
que brotava das panelas sobre o fogão, dos cachorros e dos pelegos sobre os
quais sesteava debaixo dos cinamomos. Cadê meu rosto? Será que se perdeu no Sul
desse passado sonolento? Ah, essa mania que trago nos alforjes de fazer
perguntas cujas respostas vivem nas reticências. Lembro que no pátio de minha
infância brincavam os pintos e os passarinhos, fedendo a esterco e a árvores, e
ambos traziam rios antes de chover.
As chuvas molhavam minha pele e os
meus internos. Um dia ganhei uma capa gaúcha, de baeta colorada, que muito me
alegrou. Nessa época, contudo, já sabia que o que molha a gente, de fato, são
os rios interiores, os que não têm margens, os que não têm água, só peixes carnívoros.
Os espelhos mostraram-me os duplos e me confundiram. Depois, muitos anos
depois, aprendi a beber lágrimas na chuva com reflexos cristalizados de
minúsculas gotas de sangue. Ah, parceiro, mas não pense que estou me vitimando.
Ao contrário. Essas tristezas me forjaram para a luta. E me encontrei na
literatura regional, contando causos, inventando personagens, provocando
emoções, trazendo à tona os sentimentos esquecidos. Meus e dos leitores. E, sem
querer, me fiz escrevinhador de causos e isso, meus amigos, me redime e
acalenta. Me ressuscita.
Então volto a mirar meu espelho e,
milagre, vejo um guri cheio de vida, de sonho, de esperança e que sorri. Nesta
madrugada, monto no lombo de uma estrela prateada, abano o pala colorado para
os amigos e sigo meu destino. Ouço o cantar dos galos e um ponteio de milonga
enquanto abraço a manhã chuvosa que umedece a minha saudade…
(Da coluna Campereada, de
Paulo Mendes, no Correio do Povo)
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