(Excerto)*
François-René
Moreaux. Proclamação da Independência, 1844.
Museu Imperial de
Petrópolis, Rio de Janeiro.
A correspondência entregue pelos dois
mensageiros a D. Pedro na colina do Ipiranga refletia esse momento máximo de
confronto entre Brasil e Portugal. Uma carta da princesa Leopoldina recomendava
ao marido prudência e que ouvisse com atenção os conselhos de José Bonifácio. A
mensagem do ministro dizia que informações vindas de Lisboa davam conta do
embarque de 7.100 soldados que, somados aos 600 que já tinham chegado à Bahia,
tentariam atacar o Rio de Janeiro e esmagar os partidários da Independência.
Diante disso, Bonifácio afirmava que só haveria dois caminhos para D. Pedro. O
primeiro seria partir imediatamente para Portugal e lá ficar prisioneiro das
cortes, condição na qual já se encontrava seu pai, D. João. O segundo era ficar
e proclamar a Independência do Brasil, “fazendo-se seu imperador ou rei”.
“Senhor, o dado está lançado e de Portugal não temos a esperar senão escravidão
e horrores”, escrevia Bonifácio. “Venha Vossa Alteza Real o quanto antes, e
decida-se, porque irresolução e medidas de água morna (...) para nada servem, e
um momento perdido é uma desgraça”. Uma terceira carta, do cônsul britânico no
Rio de Janeiro, Henry Chamberlain, mostrava como a Inglaterra analisava a
situação política em
Portugal. Segundo ele, já se falava em Lisboa em afastar D. Pedro
da condição de príncipe herdeiro como punição pelos seus repetidos atos de
rebeldia contra as cortes constituintes. A carta de Leopoldina, a mais enfática
de todas, terminava com uma frase que não deixava dúvida sobre a decisão a ser
tomada: “Senhor, o pomo está maduro, colhe-o já!”
Quatro anos mais tarde, em depoimento
por escrito, o padre Belchior registrou o que havia testemunhado a seguir:
“D. Pedro, tremendo de raiva,
arrancou de minhas mãos os papéis e, amarrotando-os, pisou-os e deixou-os na
relva. Eu os apanhei e guardei. Depois, virou-se para mim e disse:
– E agora, padre Belchior?
Eu respondi prontamente:
– Se Vossa Alteza não se faz rei do
Brasil será prisioneiro das Cortes e, talvez, deserdado por elas. Não há outro
caminho senão a independência e a separação.
D. Pedro caminhou alguns passos,
silenciosamente, acompanhado por mim, Cordeiro, Bregaro, Carlota e outros, em
direção aos animais que se achavam à beira do caminho. De repente, estacou já
no meio da estrada, dizendo-me:
– Padre Belchior, eles o querem, eles
terão a sua conta. As cortes me perseguem, chamam-me com desprezo de rapazinho
e de brasileiro. Pois verão agora quanto vale o rapazinho. De hoje em diante
estão quebradas as nossas relações. Nada mais quero com o governo português e
proclamo o Brasil, para sempre, separado de Portugal.
Respondemos imediatamente, com
entusiasmo:
– Viva a Liberdade! Viva o Brasil
separado! Viva D. Pedro!
O príncipe virou-se para seu ajudante
de ordens e falou:
– Diga à minha guarda, que eu acabo
de fazer a independência do Brasil. Estamos separados de Portugal. O tenente
Canto e Melo cavalgou em direção a uma venda, onde se achavam quase todos os
dragões da guarda.
Pela descrição do padre Belchior não
houve sobre a colina do Ipiranga o brado “Independência ou Morte”, celebrizado
um século e meio mais tarde pelo ator Tarcísio Meira, no papel de D. Pedro em
filme de 1972. O famoso grito aparece num outro relato, do alferes Canto e
Melo, registrado bem mais tarde, quando o acontecimento já havia entrado para o
panteão dos momentos épicos nacionais. A versão do alferes, de tom obviamente
militar, mostra um príncipe resoluto e determinado. Por ela, D. Pedro teria
lido a correspondência e, “após um momento de reflexão”, teria explodido, sem
pestanejar:
‒ É tempo!
Independência ou morte! Estamos separados de Portugal!
A terceira testemunha, o coronel
Marcondes, infelizmente não estava no alto da colina do Ipiranga, em condições
de esclarecer as contradições entre os depoimentos do padre Belchior e do
alferes Canto e Melo. Marcondes, como se viu acima, recebera ordens de D. Pedro
para se adiantar com a guarda de honra e naquele momento descansava com seus
soldados numa venda próxima do riacho, local hoje conhecido como “Casa do
Grito”. Por precaução, no entanto, havia destacado um vigia para alertá-lo da
eventual aproximação do príncipe. Foi desse ponto de observação que Marcondes
primeiro viu Bregaro e Ramos Cordeiro, os dois mensageiros da corte, cruzarem a
galope rumo à colina. Passados alguns instantes, notou que a sentinela vinha no
sentido contrário, em direção à guarda de honra. Avisava da chegada de D.
Pedro, também a galope.
O depoimento do coronel:
“Poucos minutos poderiam ter-se
passado depois da retirada dos referidos viajantes (Bregaro e Cordeiro), eis
que percebemos que o guarda, que estava de vigia, vinha apressadamente em
direção ao ponto em que nos achávamos. Compreendi o que aquilo queria dizer e,
imediatamente, mandei formar a guarda para receber D. Pedro, que devia entrar
na cidade entre duas alas. Mas tão apressado vinha o príncipe, que chegou antes
que alguns soldados tivessem tempo de alcançar as selas. Havia de ser quatro
horas da tarde, mais ou menos. Vinha o príncipe na frente. Vendo-o voltar-se
para o nosso lado, saímos ao seu encontro. Diante da guarda, que descrevia um
semicírculo, estacou o seu animal e, de espada desembainhada, bradou:
‒ Amigos! Estão, para sempre,
quebrados os laços que nos ligavam ao governo português! E quanto aos topes
daquela nação, convido-os a fazer assim!
E arrancando do chapéu que ali trazia
a fita azul e branca, a arrojou no chão, sendo nisto acompanhado por toda a
guarda que, tirando dos braços o mesmo distintivo, lhe deu igual destino.
‒ E viva o Brasil livre e
independente!, gritou D. Pedro.
Ao que, desembainhando também nossas
espadas, respondemos:
‒ Viva o Brasil livre e independente!
Viva D. Pedro, seu defensor perpétuo!
E bradou ainda o príncipe:
‒ Será nossa divisa de ora em diante:
Independência ou Morte!
Por nossa parte, e com o mais vivo
entusiasmo, repetimos:
‒ Independência ou Morte!
A proclamação de D. Pedro descrita
pelo coronel Marcondes é chamada por alguns historiadores de “Segundo Brado do
Ipiranga”. Aconteceu alguns minutos depois do primeiro, já na meia encosta da
colina, a cerca de 400
metros do riacho. É interessante observar as sutilezas
entre os dois gritos do Ipiranga. O primeiro ocorreu de forma mais simples, na
presença de um grupo restrito e revela traços de indecisão na atitude de D.
Pedro. O segundo, solene e convicto, perante a guarda de honra, é o que ficou
registrado na memória nacional. O relato do padre a respeito desse segundo
grito confirma a versão de Marcondes, embora com palavras diferentes. Por ele,
diante da guarda, o príncipe repetiu, agora em tom mais enfático, a declaração
que fizera momentos antes:
‒ Amigos, as cortes portuguesas
querem mesmo escravizar-nos e perseguem-nos. De hoje em diante nossas relações
estão quebradas. Nenhum laço nos une mais.
E, arrancando do chapéu o laço azul e
branco, decretado pelas cortes como símbolo da nação portuguesa, atirou-o ao
chão dizendo:
‒ Laço fora, soldados! Viva a
Independência e a liberdade do Brasil.
Respondemos com um viva ao Brasil
independente e a D. Pedro.
O príncipe desembainhou a espada, no
que foi acompanhado pelos militares. Os acompanhantes civis tiraram os chapéus.
E D. Pedro disse:
‒ Pelo meu sangue, pela minha honra,
pelo meu Deus, juro fazer a liberdade do Brasil.
‒ Juramos, respondemos todos.
D. Pedro embainhou novamente a espada,
no que foi imitado pela guarda, pôs-se à frente da comitiva e voltou-se ficando
em pé nos estribos:
‒ Brasileiros, a nossa divisa de hoje
em diante será Independência ou Morte; e as nossas cores, verde e amarelo, em
substituição às das cortes.
Acompanhado pela guarda de honra,
desde aquele momento rebatizada com o pomposo nome de “Dragões da
Independência”, D. Pedro chicoteou a sua “baia gateada” para vencer os últimos
cinco quilômetros do total de setenta que percorria naquele dia. Faltava uma
hora para o pôr do sol quando entrou em São Paulo saudado pelos sinos das igrejas e pelos
escassos moradores que se aglomeravam nas ruas de terra batida. Exausto,
empoeirado e ainda debilitado pelos problemas intestinais, recolheu-se ao
Palácio dos Governadores, o mesmo que o havia hospedado dias antes ao chegar do
Rio de Janeiro.
As notícias dos extraordinários
acontecimentos daquela tarde às margens do Ipiranga se espalharam rapidamente.
Na frente do acanhado teatrinho do Pátio do Colégio um grupo de partidários da
independência ligado à Igreja e à maçonaria reuniu-se para decidir o que fazer.
Era preciso homenagear o príncipe, mas ninguém sabia exatamente como proceder.
Obviamente, não havia tempo de preparar um Te Deum ou uma recepção de gala,
como a circunstância pedia. Era necessário improvisar. Por isso, decidiu-se
aproveitar a encenação da peça O Convidado de Pedra, marcada para aquela noite.
D. Pedro gostava de teatro e sua presença no camarote principal já estava
confirmada16. “Disseram que era preciso declarar-se um monarca e formar uma
monarquia brasileira”, relatou 40 anos mais tarde o padre Ildefonso Xavier
Ferreira, integrante do grupo. “Ninguém merecia mais do que o ínclito príncipe
de Portugal, que nos acabava de dar a independência”. O próprio Ildefonso foi
encarregado de fazer a aclamação.
D. Pedro entrou no teatro às 21h30min
e, como previsto, dirigiu-se ao camarote principal sem saber da homenagem que
lhe prestariam em
seguida. Antes que o espetáculo começasse, Padre Ildefonso
levantou-se do camarote número 11, onde se reunia o grupo de maçons, e se
dirigiu à plateia. Ali, colocou-se de pé na terceira bancada, bem em frente ao
lugar ocupado pelo príncipe, respirou fundo e se preparou para cumprir seu
papel. Na hora de fazer a aclamação, porém, ficou inseguro e relutou por alguns
segundos. “Temia que o príncipe não aceitasse”, contou depois. “Então, eu seria
preso como revolucionário”. Por fim criou coragem e soltou o vozeirão:
‒ Viva o primeiro rei brasileiro!
Para seu alívio, D. Pedro inclinou-se
em sinal de aprovação e agradecimento. Era a senha para que todo o teatro
viesse abaixo e repetisse o brado do padre Ildefonso:
‒ Viva o primeiro rei brasileiro!,
explodiu a multidão.
Animado com a repercussão, padre
Ildefonso repetiu o grito por três vezes. “Virou o herói da noite diante
daquele que havia sido o herói do dia”, na inspirada definição de Octávio
Tarquínio de Sousa.
(Revista Época)
*Excerto: parte do texto integral, fragmento.
Os personagens da
Independência:
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