A criação e o fardamento
A Guarda Civil, desde a sua criação,
rezava o discurso, deveria se pautar “dentro dos princípios da polícia
preventiva, branda, maneirosa e assistencial...”, mas cuidando de reforçar,
também, o aspecto da força, declarando “... sem prejuízo de ação firme, quando
necessária ela se tornasse.”
A partir de 1938, já em tempo da
ditadura, o Estado Novo assumindo sua face autoritária-policialesca, vem exigir
uma ampliação das responsabilidades da corporação, preparando-a para a
repressão violenta das manifestações de rua contrárias aos interesses do
regime. É criado dentro da Guarda um grupo especial que se encarregaria,
especificamente, desse trabalho. Ganharia o nome de “Policia de Choque”, e
mesmo que, depois, viesse a mudar a denominação oficial, assim seria conhecida,
enquanto existiu, pelos porto-alegrenses. Que, aliás, ao contrário das
simpatias que manifestavam pela Guarda Civil, detestavam profundamente esse
grupo, com o qual tantas vezes se envolveria em episódios violentos. Tinham
uniformes diferentes dos demais guardas. Usavam, invariavelmente, a cor cáqui,
que também era a cor dos uniformes de verão dos outros guardas. Seu quepe era
vermelho; tinham cinturão por cima da bata russa, abotoada até o alto. Alguns o
chamavam de “Cardeais”, mas o povo os chamava de “cabeça de tomate” ou “cabeça
de pica”.
A batalha perdida do
“Choque”
Lá por volta de 1945 e num lugar
muito especial: a rua Cabo Rocha (Atual rua professor Freitas de Castro, Bairro
azenha). Era um tempo que o “Choque” ainda tinha o “Bagre”, o “Xingu”, o
Hiturbes, o Viafone, o fiscal Gamaliel... E foram eles, junto com outros que
nunca soubemos os nomes, os personagens da maior briga já travada contra os
marítimos (Esses homens eram estivadores, homens fortes acostumados a levantar
peso todos os dias no trabalho diário. A lenda diz que a briga foi contra os
marinheiros, mas não é verdade). Foi num cabaré, que existiu lá pela metade da
rua, o “Gato Preto”. Cabaré já antigo, com uma certa tradição de lugar correto,
de boas profissionais e de pouca briga. Tinha até uma freguesia cativa entre o
pessoal dos marítimos, já que a casa pertencia a um ex-embarcado. O dono do
“Gato Preto” não queria saber de “leões-de-chácara”. Se a coisa engrossava,
chamava a polícia e pronto. Pois foi o que aconteceu naquela noite: a coisa
engrossou e o dono chamou a polícia. A 2ª Delegacia mandou um guarda civil. Geralmente
era o suficiente. O pessoal respeitava a Guarda, mas aquela noite seria uma
noite de exceções.O guarda chegou e já saiu sendo desacatado, xingado,
enxotado...Azar do guarda. Apanhou porque foi lá no dia errado.
“Chama o Choque!” E foi o que o
delegado mandou fazer, tão logo ouviu o relato do guarda. “Eles vão lá e cagam
a pau esses sem-vergonhas que não sabem me respeitar o guarda.” Não demorou
muito, já se ouviu a sirene do caminhãozinho do “Choque”, fazendo a curva da
Azenha, nem parou na 2ª Delegacia – foi direto para o cabaré da Cabo Rocha.
Já desceram dando borrachadas em tudo
que se movia ou respirava. Era a famosa “cordialidade” do “Choque”. Pau e pau.
Mas então, outra exceção, os marítimos não se intimidaram e partiram para a
retribuição das gentilezas. Mais pau e pau. O negócio foi ficando feio, o tempo
foi passando, o “Choque” não ganhava, os marítimos se organizavam. Era hora de
pedir reforços. E nem podia ser diferente, se não resolvessem a parada no
ataque inicial, no primeiro pulsão, perdiam o fôlego e tinham que buscar
reforço. O fiscal mandou o motorista buscar reforço. Não demora muito e vem
outra leva, ainda que menor, dos homens do “Choque”. Juntam-se a eles os
guardas dos setores próximos. Os marítimos vão, aos poucos, cedendo terreno.
Começam a recuar. Ainda estão em maior número, mas a diferença é pequena e os
homens do “Choque” estão mais bem equipados. Hora de chamar reforço, também. Um
carro de praça parte rápido para buscar mais gente no centro. Tinha gente nos
bares da Mauá e nos do Mercado, nos bordéis do início da Voluntários, nas
dezenas de espeluncas e botecos dali mesmo, nas chatas da doca das Frutas, nos
navios ancorados no porto, enfim em todos os lugares para quem soubesse
procurar. Em poucos minutos, velhos Chevrolets e Fords, da praça do Mercado vão
ficando abarrotados de uma horda truculenta de brigões sedentos pra dar
porrada! Juntavam-se estivadores, arrumadores, ajudantes de caminhão, gente que
trabalhava na faixa portuária. Frequentadores de botecos do Mercado, da
Voluntários, enfim todo mundo que tinha alguma diferença com o “Choque”. Tinha
até um “General” comandando a operação, era o Pacheco, homem do Sindicato dos
estivadores e de quem se dizia, a boca pequena, ter vinculações com o Partido
Comunista e com a campanha “queremista”. Seja lá como fosse, o Pacheco, do alto
de sua imensa barriga, com aquele vozeirão grave que lhe era marca registrada,
transmitia, resoluto, as ordens arregimentadoras: “Ligeiro, camaradas, nossos
irmãos necessitam de nossa solidariedade. Embarquem todos, não podemos permitir
que as forças da repressão massacrem os trabalhadores. Disciplina
revolucionária, camaradas. Esmaguem os inimigos do operariado. Embarquem
rápido, camaradas!”
O “front” era uma pancadaria
generalizada. Há muito já tinha extrapolado os limites do “Gato Preto” e tomava
conta de boa parte do meio da rua. Os contendores mantinham-se agrupados e se
enfrentava em linha, como falanges macedônicas. A gritaria era infernal. Todos
berravam as mais tenebrosas imprecações. Já tinha guarda com o cacetete de
borracha partido em dois.
Batiam de mão fechada, então. Na realidade, aquela era uma
batalha campal organizada. Tinha regras, lutavam mesmo a soco, nenhum tiro
havia sido disparado e nem seria até o final.
Aos guardas, juntaram-se as últimas
reservas disponíveis no quartel. Agora, se houvesse necessidade de mais
reforço, só apanhando os que estavam de serviço nos setores espalhados pela
cidade. E isso seria uma desmoralização para os homens do “Choque”. Uma nódoa
em sua ilibada reputação. Nada disso, agora era uma questão de honra – lutariam
com os recursos disponíveis até o final. Problema era o “vigor da mão
proletária”. E que vigor!
E continuaram brigando ao longo de
toda a madrugada, sem trégua, sem parada para descanso ou para pedir clemência.
Desistiram pouco depois do amanhecer quando não aguentavam mais. Ambas as
facções. Cansados, estropiados, todos arrebentados e em frangalhos, com
hematomas disseminados por todo o corpo, foram arrefecendo a fúria e a luta foi
perdendo o ímpeto naquela longa noite da Cabo Rocha.
No dia seguinte, na sede do Sindicato, Pacheco afirmava convicto: “Foi a Stalingrado deles. As forças populares souberam honrar a palavra de ordem da Passionara, “no passarán”, e eles não passaram. Vitória do proletariado organizado.”
No dia seguinte, na sede do Sindicato, Pacheco afirmava convicto: “Foi a Stalingrado deles. As forças populares souberam honrar a palavra de ordem da Passionara, “no passarán”, e eles não passaram. Vitória do proletariado organizado.”
Pelo visto, o único perdedor foi o
dono do “Gato Preto” que teve sua casa completamente destruída. Por muitos
meses foi obrigado a manter uma espécie de imposto sobre o “mixê”, a coisa que
desagradava muito as “trabalhadoras” da casa. Ele se defendia dizendo aos
gritos; “E aí, o que é que vocês querem. A casa tem de ser consertada ou então
vai todo mundo trepar nas moitas!” Tinha alguma lógica...
§ § § § §
Livro consultado:
“Os Vigilantes da Ordem, guarda, cachaça e meretrizes”,
“Os Vigilantes da Ordem, guarda, cachaça e meretrizes”,
de Rejane Penna e Luiz Carlos da Cunha
Carneiro.
Editora Fotoletras
Nenhum comentário:
Postar um comentário