João Simões Lopes
Neto
Patrício,
apresento-te Blau, o vaqueano.
− Eu tenho cruzado o nosso Estado em
caprichoso ziguezigue. Já senti a ardentia das areias desoladas do litoral; já
me recreei nas encantadoras ilhas da lagoa Mirim; fatiguei-me na extensão da
coxilha de Santana; molhei as mãos no soberbo Uruguai; tive o estremecimento do
medo nas ásperas penedias do Caverá; já colhi malmequeres nas planícies do
Saicã, oscilei sobre as águas grandes do Ibicuí; palmilhei os quatro ângulos da
derrocada fortaleza de Santa Tecla, pousei em São Gabriel , a forja
rebrilhante que tantas espadas valorosas temperou, e, arrastado no turbilhão
das máquinas possantes, corri pelas paragens magníficas de Tupanceretã, o nome
doce, que no lábio ingênuo dos caboclos quer dizer os campos onde repousou a
mãe de Deus...
− Saudei a graciosa Santa Maria,
fagueira e tranquila na encosta da serra, emergindo do verde-negro da montanha
copada o casario, branco, como um fantástico algodoal em explosão de casulos.
− Subi aos extremos do Passo Fundo,
deambulei para os cumes da Lagoa Vermelha, retrovim para a merencória Soledade,
flor do deserto, alma risonha no silêncio dos ecos do mundo; cortei um
formigueiro humano na zona colonial.
− Da digressão longa e demorada,
feita em etapas de datas diferentes, estes olhos trazem ainda a impressão vivaz
e maravilhosa da grandeza, da uberdade, da hospitalidade.
− Vi a colmeia e o curral; vi o pomar
e o rebanho, vi a seara e as manufaturas; vi a serra, os rios, a campina e as
cidades; e dos rostos e das auroras, de pássaros e de crianças, dos sulcos do
arado, das águas e de tudo, estes olhos, pobres olhos condenados à morte, ao
desaparecimento, guardarão na retina até o último milésimo da luz, a impressão
da visão sublimada e consoladora: e o coração, quando faltar ao ritmo, arfará
num último esto para que a raça que se está formando, aquilate, ame e
glorifique os lugares e os homens dos nossos tempos heróicos, pela integração
da Pátria comum, agora abençoada na paz.
E, por circunstâncias de caráter
pessoal, decorrentes da amizade e da confiança, sucedeu que foi meu constante
guia. e segundo o benquisto tapejara Blau Nunes, desempenado arcabouço de
oitenta e oito anos, todos os dentes, vista aguda e ouvido fino, mantendo o seu
aprumo de furriel farroupilha, que foi, de Bento Gonçalves, e de marinheiro
improvisado, em que deu baixa, ferido, de Tamandaré.
Fazia-me ele a impressão de um perene
tarumã verdejante, rijo para o machado e para o raio, e abrigando dentro do
tronco cernoso enxames de abelhas, nos galhos ninhos de pombas...
Genuíno tipo − crioulo −
rio-grandense (hoje tão modificado), era Blau o guasca sadio, a um tempo leal e
ingênuo, impulsivo na alegria e na temeridade, precavido, perspicaz, sóbrio e
infatigável; e dotado de uma memória de rara nitidez brilhando através de
imaginosa e encantadora loquacidade servida e floreada pelo vivo e pitoresco
dialeto gauchesco.
E, do trotar sobre tantíssimos rumos;
das pousadas pelas estâncias; dos fogões a que se aqueceu; dos ranchos em que
cantou, dos povoados que atravessou; das cousas que ele compreendia e das que
eram-lho vedadas ao singelo entendimento; do pelo-a-pelo com os homens, das
erosões da morte e das eclosões da vida, entre o Blau − moço, militar − e o
Blau − velho, paisano −, ficou estendida uma longa estrada semeada de
recordações − casos, dizia − , que de vez em quando o vaqueano recontava, como
quem estende, ao sol, para arejar, roupas guardadas ao fundo de uma arca.
Querido
digno velho!
Saudoso
Blau!
Patrício,
escuta-o.
Não é à toa que Contos Gauchescos
faz parte da lista de leituras obrigatórias para o vestibular da UFRGS nos
últimos anos. Ele ali está na justa companhia de José Saramago (História do
Cerco de Lisboa), Guimarães Rosa (Manuelzão e Miguilim) e de outros. E de
outros menores, deveria dizer. Claro, a lista da UFRGS não é garantia de
qualidade − por exemplo, lá não estão Érico Veríssimo nem Dyonélio Machado –, mas serve
como comprovação de que o pequeno volume de 19 contos narrados por Blau
Nunes está bem vivo.
Contos Gauchescos (1912) é o
segundo livro de João Simões Lopes Neto (1865-1916), que também escreveu Cancioneiro
Guasca (1910), Lendas do Sul (1913) e Casos do Romualdo (1914). O autor
viveu 51 anos e publicou apenas quatro livros. Talvez sejam muitos, se
considerarmos a colorida vida do autor.
(...)
A primeira edição de Contos
Gauchescos foi publicada em 1912. Se o ano é este, a data exata da publicação parece
ter sido perdida. Na primeira página do volume é feita a apresentação do
vaqueano Blau Nunes, que o autor afirma ter sido seu guia numa longa viagem
pelo interior do Rio Grande do Sul.
Publicado em
25/02/2012 no Sul21
Nenhum comentário:
Postar um comentário