quinta-feira, 23 de maio de 2019

Tinteiros e Bagadus



Imagem da Internet

Quando em 1835 a guerra rompeu entre as facções farroupilha e caramuru, os meninos da cidade de Porto Alegre formaram duas parcialidades que se reproduzem de tempos a tempos a qualquer movimento bélico no país.

Eram os Tinteiros e Bagadus.

Desde a ponta das Pedras até a rua Clara*, estavam os últimos; desde a rua Clara em diante existiam os primeiros.

As duas denominações exprimiam caracteristicamente os indivíduos de bairros tão diferentes pelos costumes e civilização de seus habitantes. Tinteiro significava o que sabia ler e escrever, a miuçalha que, favoneada pela fortuna podia ter a tintura literária, segundo seus gostos; bagadu, o desvalido da sorte, cujo destino se assemelhava ao peixe, donde lhe proviera o nome, e que não é menos favorecido da natureza.

Um era o rico, o letrado, o que tinha as comodidades da vida e as condições que de per si o elevavam; o outro, o pobre, o ignorante, tomando um lugar no banquete da vida por seus esforços próprios na luta contra a natureza bravia e indômita e contra o parasitismo dos grandes e poderosos que tendem sempre a absorver os modestos, obscuros, e, no entanto, incansáveis obreiros, imenso corpo de colaboradores anônimos, em cujos braços repousa a humanidade.

Apesar da metamorfose pela qual tem passado a cidade, desde a época a que nos reportamos, ainda subsistem traços entre as crianças dos dois bairros, em sua generalidade. Porém o tinteiro tem sempre conquistado terreno a seu adversário, o tem lentamente repelido, reduzindo-o quase ao domínio das costas de sul e oeste.

Zeca era então um dos chefes dos bagadus. A partida de seu comando levava sempre de vencida o inimigo. Contava cada vitória por cada combate ferido.

Um dos seus mais belos triunfos foi junto à bateria da defesa da costa entre as ruas Principal e Bela. Aí os tinteiros tinham o número duplo de gente e alguns mais esforçados. Zeca, para vencê-los, usou dum estratagema. Foi insensivelmente impelindo-os para a praia e caindo de súbito com inaudita impetuosidade sobre eles, em pouco os meteu duas braças dentro dʼágua.

É o que queria. Os bagadus são como a ariranha que caça a ave aquática por debaixo da onda. Como verdadeiros anfíbios mergulharam, e em rápido intervalo segurando-os pelas pernas, iam atirando-os ao comprido nʼágua.

Era cena interessante! Só se via tinteiro a espernear na ânsia da asfixia! E ai deles se não viesse em seu socorro a guarda da bateria! Talvez que algum tivesse ficado sem vida no campo de batalha.

Depois que os competidores saíram murchos do banho como pintainhos caídos no açude, foi um infernal alarido.

− Vivam os bagadus!

− Fora os tinteiros! Fiu, fiau! Fiu, fiau!

− Viva Pilungo!

E, assim, com gritos e assovios de vaia, foram acompanhando os vencidos até a velha ponte de madeira que então existia na confluência do arroio Dilúvio com o Guaíba, e depois foi substituído pela atual de pedra no extremo da rua da Figueira.

Outra ocasião ele chegou com mais dez companheiros veio provocar um grande magote dos contrários no desembocar da rua Formosa na praça da Matriz. E quando depois de uma tremenda xingação foram assaltados pelos outros, deitaram a correr, desceram a rua do Cemitério, dobraram a do Arvoredo e acolheram-se à sombra de uns laranjais que ficavam nas imediações do atual seminário.

O pequeno caudilho dos tinteiros, que era sacudido e tinha grande vontade de abater o topete a Pilungo, gritou aos seus em número pouco mais ou menos de trinta:

− Encurralem os bagres!

O laranjal ficou cercado e Zeca com os seus dez camaradas fez frente à multidão. O sítio, onde se encostara, era defendido por um bamburral de pitangueiras e maricás, ijapecangas e outras trepadeiras.

Os outros aproximavam, e eles firmes como estátuas, esperando-os.

Quando os tinteiros traçaram um semicírculo em torno e o vinham fechando com espantosa alacridade, Zeca pôs dois dedos nos cantos da boca e desprendeu um assovio estrídulo e agudo.

Então por cada tronco escorregaram dois ou três rapazes armados de cutias e guascas.

− Viva os bagadus! Rugiram atacando inimigo por todos os lados, segurando-os na estatelação da surpresa, e depois de despi-los, indo amarrá-los em cada árvore ali existente.

Alcançado o triunfo, Zeca retirou-se satisfeito da façanha. Os prisioneiros ficaram duas horas na incômoda postura, até que atraídas pela desesperada choradeira algumas pessoas vieram soltá-los, não deixando de rir da proeza do endemoninhado rapaz.

Porém, um dia, também foi a única vez, Zeca estava entretido no Caminho Novo, junto às fortificações, em admirar os navios de guerra que flanquevam a linha de defesa, senão quando um grupo de contrários amontoram-lhe uma camaçada de pau.

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(Parte do conto “Pilungo”, no livro “Paisagens”, 
de Apolinário Porto Alegre)

*Rua Clara atual Rua General João Manoel.


Apolinário José Gomes Porto-Alegre (Rio Grande, RS, 29 de agosto de 1844Porto Alegre, RS, 23 de março de 1904) foi um escritor, historiógrafo, poeta e jornalista brasileiro. É considerado um dos autores mais importantes do Rio Grande do Sul.

P.S. A guerra terminou após a batalha do dia 29 de junho de 1849, quando TINTEIROS e BAGADUS foram cercados pela polícia e uniram-se para reagir contra a agressão oficial. Com a chegada das mães dos jovens a guerra chegou a bom termo. Apesar disto, a polícia efetuou a prisão de alguns BAGADUS sob o pretexto de que eram “vagabundos”, “de maus costumes”, ordenou que desfilassem pela cidade no meio de um pelotão de soldados e os encaminhou para servirem na Marinha Imperial, onde a chibata e os espancamentos eram comuns. (João Batista Marçal/As lutas operárias no RS)

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