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Quando em 1835 a guerra rompeu entre
as facções farroupilha e caramuru, os meninos da cidade de Porto Alegre
formaram duas parcialidades que se reproduzem de tempos a tempos a qualquer
movimento bélico no país.
Eram os Tinteiros e Bagadus.
Desde a ponta das Pedras até a
rua Clara*, estavam os últimos; desde a rua Clara em diante existiam os
primeiros.
As duas denominações exprimiam
caracteristicamente os indivíduos de bairros tão diferentes pelos costumes e
civilização de seus habitantes. Tinteiro significava o que sabia ler e
escrever, a miuçalha que, favoneada pela fortuna podia ter a tintura literária,
segundo seus gostos; bagadu, o desvalido da sorte, cujo destino se assemelhava
ao peixe, donde lhe proviera o nome, e que não é menos favorecido da natureza.
Um era o rico, o letrado, o que
tinha as comodidades da vida e as condições que de per si o elevavam; o outro,
o pobre, o ignorante, tomando um lugar no banquete da vida por seus esforços
próprios na luta contra a natureza bravia e indômita e contra o parasitismo dos
grandes e poderosos que tendem sempre a absorver os modestos, obscuros, e, no
entanto, incansáveis obreiros, imenso corpo de colaboradores anônimos, em cujos
braços repousa a humanidade.
Apesar da metamorfose pela qual
tem passado a cidade, desde a época a que nos reportamos, ainda subsistem
traços entre as crianças dos dois bairros, em sua generalidade. Porém o
tinteiro tem sempre conquistado terreno a seu adversário, o tem lentamente
repelido, reduzindo-o quase ao domínio das costas de sul e oeste.
Zeca era então um dos chefes dos
bagadus. A partida de seu comando levava sempre de vencida o inimigo. Contava
cada vitória por cada combate ferido.
Um dos seus mais belos triunfos
foi junto à bateria da defesa da costa entre as ruas Principal e Bela. Aí os
tinteiros tinham o número duplo de gente e alguns mais esforçados. Zeca, para
vencê-los, usou dum estratagema. Foi insensivelmente impelindo-os para a praia
e caindo de súbito com inaudita impetuosidade sobre eles, em pouco os meteu duas
braças dentro dʼágua.
É o que queria. Os bagadus são
como a ariranha que caça a ave aquática por debaixo da onda. Como verdadeiros
anfíbios mergulharam, e em rápido intervalo segurando-os pelas pernas, iam
atirando-os ao comprido nʼágua.
Era cena interessante! Só se via
tinteiro a espernear na ânsia da asfixia! E ai deles se não viesse em seu
socorro a guarda da bateria! Talvez que algum tivesse ficado sem vida no campo
de batalha.
Depois que os competidores saíram
murchos do banho como pintainhos caídos no açude, foi um infernal alarido.
− Vivam os bagadus!
− Fora os tinteiros! Fiu, fiau!
Fiu, fiau!
− Viva Pilungo!
E, assim, com gritos e assovios
de vaia, foram acompanhando os vencidos até a velha ponte de madeira que então
existia na confluência do arroio Dilúvio com o Guaíba, e depois foi substituído
pela atual de pedra no extremo da rua da Figueira.
Outra ocasião ele chegou com mais
dez companheiros veio provocar um grande magote dos contrários no desembocar da
rua Formosa na praça da Matriz. E quando depois de uma tremenda xingação foram
assaltados pelos outros, deitaram a correr, desceram a rua do Cemitério,
dobraram a do Arvoredo e acolheram-se à sombra de uns laranjais que ficavam nas
imediações do atual seminário.
O pequeno caudilho dos tinteiros,
que era sacudido e tinha grande vontade de abater o topete a Pilungo, gritou
aos seus em número pouco mais ou menos de trinta:
− Encurralem os bagres!
O laranjal ficou cercado e Zeca
com os seus dez camaradas fez frente à multidão. O sítio, onde se encostara,
era defendido por um bamburral de pitangueiras e maricás, ijapecangas e outras
trepadeiras.
Os outros aproximavam, e eles
firmes como estátuas, esperando-os.
Quando os tinteiros traçaram um
semicírculo em torno e o vinham fechando com espantosa alacridade, Zeca pôs
dois dedos nos cantos da boca e desprendeu um assovio estrídulo e agudo.
Então por cada tronco
escorregaram dois ou três rapazes armados de cutias e guascas.
− Viva os bagadus! Rugiram
atacando inimigo por todos os lados, segurando-os na estatelação da surpresa, e
depois de despi-los, indo amarrá-los em cada árvore ali existente.
Alcançado o triunfo, Zeca
retirou-se satisfeito da façanha. Os prisioneiros ficaram duas horas na incômoda
postura, até que atraídas pela desesperada choradeira algumas pessoas vieram
soltá-los, não deixando de rir da proeza do endemoninhado rapaz.
Porém, um dia, também foi a única
vez, Zeca estava entretido no Caminho Novo, junto às fortificações, em admirar
os navios de guerra que flanquevam a linha de defesa, senão quando um grupo de
contrários amontoram-lhe uma camaçada de pau.
******
(Parte do conto
“Pilungo”, no livro “Paisagens”,
de Apolinário Porto Alegre)
de Apolinário Porto Alegre)
*Rua Clara atual Rua General João
Manoel.
Apolinário José Gomes Porto-Alegre (Rio Grande, RS, 29 de agosto de 1844 − Porto Alegre, RS, 23 de março de 1904) foi um escritor, historiógrafo, poeta e jornalista brasileiro. É considerado um dos autores mais importantes do Rio Grande do Sul.
P.S. A guerra terminou após a
batalha do dia 29 de junho de 1849, quando TINTEIROS e BAGADUS foram cercados
pela polícia e uniram-se para reagir contra a agressão oficial. Com a chegada
das mães dos jovens a guerra chegou a bom termo. Apesar disto, a polícia
efetuou a prisão de alguns BAGADUS sob o pretexto de que eram “vagabundos”, “de
maus costumes”, ordenou que desfilassem pela cidade no meio de um pelotão de
soldados e os encaminhou para servirem na Marinha Imperial, onde a chibata e os
espancamentos eram comuns. (João Batista Marçal/As lutas operárias no RS)
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