Por Juremir Machado
da Silva
“Quem nunca se viu diante de um
estranho ao se olhar no espelho? Quem não sentiu perfumes da infância ao
contemplar uma tarde depois da chuva. Quem já não teve vontade de sair por aí
perambulando por um dia inteiro, jogando futebol em campinhos de subúrbio,
parando para conversar com homens de cabelos brancos e olhos faiscantes de
saudades? Quem não levou a mão ao chapéu, mesmo sem jamais ter usado chapéu,
para saudar a beleza de uma moça nas ruas da cidade? Quem não se procura sem
nunca se ter perdido? Quem nunca se viu na penumbra pensando em filmes que já
não passam?
Quem não se lembra subitamente de
coisas tão esquecidas como as palavras ditas a um amigo numa noite de domingo
quando se sonhava com o futuro e se temia perder as amarras do passado? Quem
não se esquece repentinamente do que deveria sempre ser lembrado como aquela
paisagem de Natal pendurada na fotografia que se enviesou na parede? Quem já
não se levantou ao amanhecer para se embriagar com a beleza do sol nascente e
tropeçou nas pernas do tempo? Quem já não se sentiu desfalecer ao crepúsculo e
renascer com a suavidade de certas noites de verão? Quem já não quis traduzir a
vida em versos? Quem não deseja escrever a crônica que agarrará para sempre o
espírito do tempo, o ar de uma época, a vida?
Quem não se vê preocupado com as
doenças que virão e fazendo cálculos para tentar garantir a tranquilidade que,
cada vez mais, se mostrará como uma utopia, um aroma de estação, uma sensação
de vertigem como aquela experimentada depois do primeiro beijo, da primeira
viagem, do primeiro voo, da primeira loucura? Quem já não se viu nalgum momento
do dia colhendo flores para enfeitar a mesa onde se empilham os projetos, as
contas, os devaneios, as leituras e as pequenas satisfações: um cestinho
indígena cheio de canetas, um pedaço de chocolate, o livro lido até a metade,
uma carta, do tempo das cartas, exumada de uma velha pasta, o porta-retratos
com suas cores, seus sorrisos e suas marcas da travessia?
Quem não se sente com o coração
apertado quando anda pelas ruas e vê a pobreza como se ela fosse tão “natural”?
Quem não se pega, de repente, sorrindo com uma nostalgia não requerida nem
convidada para se apresentar na sala de visitas? Quem já não saiu para caminhar
apenas para afastar a ansiedade, essa angústia sem objeto que se infiltra na
alma como uma aragem sibilando entres frestas, e se viu diante de um corredor
de lembranças: cheiro de terra molhada, um pedaço de brinquedo colorido, risos
de crianças no parquinho, frutas amadurecendo no pé, a vida passando suavemente
ao som das máquinas e dos homens, dos pássaros e dos violões?
Quem já não regou as plantas na
varanda pensando nos recantos do quintal, aquele para o que nunca se usa artigo
indefinido? Quem não molhou as mãos na água da pia e sentiu o frescor das
sangas, dos arroios e dos rios que correm distantes? Quem já não se ouviu na
hora mais terna ou mais melancólica do dia cantarolando, entre alegre e triste,
solene e filosófico, “é sempre a mesma história, a luta pelo amor e pela
glória?”
(Do Correio do Povo,
maio de 2019)
A vida continua, " Graças a Deus" mas dá uma saudade.
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