À direita, de terno
claro, Abelard Jacques Noronha
Na edição do Jornal do Brasil de 24 de novembro de 1944, Ary Barroso, cronista,
letrista, apresentador de televisão, narrador de futebol, autor da música/hino
Aquarela do Brasil, faria o mais enobrecedor dos textos a respeito do grande
internacional da década de 1940. O título de sua crônica era: “O Macumbeiro do
Profissionalismo Indígena”.
A postura do presidente do Sport
Club Internacional e os expressivos resultados do Rolo Compressor foram
homenageados e transcrita abaixo integralmente:
“O
Macumbeiro do Profissionalismo Indígena”.
Ary Barroso
Nos áureos tempos do amadorismo
puro, o jogador escolhia livremente o clube dos seus afetos e envergava a sua
camiseta com orgulho e entusiasmo. Os voos eram raros e, quase sempre, provocavam
escândalo. Quando um atleta qualquer trocava de clube, era cognominado
sarcasticamente de borboleta. Os borboletas podem ser os precursores da
“insensibilidade clubística” que contaminou o nosso profissionalismo. O regime
da remuneração organizava (ou desorganizada?) veio acabar definitivamente com o
lado emocional do futebol. Hoje em dia o jogador não tem mais preferência. Vai
para o Grêmio que melhor lhe pagar. Não joga por causa do clube, senão pelo
contrato a prazo fixo. Tanto se lhe faz vestir uma camisa branca ou preta, azul
ou vermelha, aqui ou em São
Paulo , no Norte ou no Sul. Todo fim de ano é este corre-corre
tremendo em busca de craques, com operações mais ou menos escusas e expedientes
geralmente inferiores.
No panorama do profissionalismo brasileiro,
porém, há um grupo de jogadores sui
generis. As abarrotadas arcas de dinheiro dos clubes milionários do Rio e
de São Paulo absolutamente não seduzem o jogador deste grupo. São profissionais
com mentalidade amadorista. Sentem-se bem onde estão e ouvem com singular
desinteresse as ternas e embaladoras canções das sereias astutas que pretendem
abraçar. Refiro-me ao notável grupo de profissionais do Internacional de Porto
Alegre!...
O estribilho destas canções de amor é o mesmo com pequeninas
adaptações:
− Que é que vocês pretendem da
vida, perdidos lá pelas lonjuras dos pampas? A felicidade está por aqui. Há
dinheiro, fama, popularidade, cartaz, enfim... Vamos pensar no dia de amanhã.
E eles continuam firmes no
Internacional... Sai jogador do Pará, de Pernambuco, da Bahia, de Minas Gerais,
do Paraná. Do Internacional não sai. Os emissários vão ao sul e voltam
desnorteados com o livro de cheques intacto. Que será isso? Não é por falta das
sereias cantarem para eles o chorinho buliçoso e metálico das cifras. Há
qualquer segredo no apego destes profissionais do Internacional ao próprio
clube.
Alguém dirá:
− São muito burros.
Responderei:
− De burro não têm nada. São
divinamente sagazes e inteligentes. Querem saber o que um deles me disse?
− Não me interessam as propostas
formidáveis que constantemente nos fazem representantes de clubes cariocas e
paulistas. Não deixo o Internacional. Vivo bem por lá, rodeado de amigos
sinceros, protegido por meus diretores e amparado pela minha torcida. Por que
hei de abandonar o agradável ambiente em que vivo, pela ambição de mais alguns
cruzeiros? Nem tudo neste mundo se pode comprar com dinheiro. Não, estou
satisfeito no Internacional e já que comecei neste clube, nele hei de terminar
minha carreira. Se o futebol brasileiro precisar de meus modestos recursos,
estarei a sua disposição com prazer e honra. Agora, clube, só o meu.
Quando o craque terminou eu ainda
continuei olhando para ele, meio tonto, meio abobalhado, sem capacidade para
articular uma palavra. Percebendo minha atitude, sublinhou as suas expressões
com este período definitivo:
− É isso mesmo, “seu” Ary.
Uma espécie de tiro de misericórdia.
Sacudi a cabeça como quem espanta
o sono e rapidamente dei um pulaço na cadeira e fui cair no gabinete de
trabalho do senhor Abelard Jacques Noronha*, na capital gaúcha, para
perguntar-lhe com a sofreguidão dos curiosos impenitentes:
− Presidente, o senhor que é
macumbeiro do profissionalismo indígena, o senhor que faz despachos terríveis e
os coloca na porta da casa de seus jogadores a ponto de inocular-lhes a mística
internacionalista, o senhor que não tem medo de tenores e muito menos de
sereias, o senhor feiticeiro dos pampas, quer me revelar a sua reza milagrosa?
Olhe, que sabe não é isso que está faltando ao futebol brasileiro e nós seremos
capazes de fazer uma revolução no profissionalismo fazendo de todos os
jogadores gente da marca dos seus jogadores. Ah, pai de santo invencível, me dá
um pouco de seu marafo.
Porque, meus senhores, a obra do
presidente do Internacional tem sido tão útil, tão grande e tem produzido tão
admiráveis frutos que ele pode ser apontado como único em sua terra, pondo amor
no coração dos seus contratados e retendo no seu clube astros de invulgar
brilho, como este gigantesco Ávila, este satânico Adãozinho, este incansável
Abigail e esta maravilha que é Tesourinha. Eta macumbeiro brabo e perigoso.
(Do livro “A História
dos Grenais”, de David Coimbra,
Nico Noronha, Mário
Marcos de Souza, Carlos André Moreira)
*Presidente do Internacional no período de 1943-1944.
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