sábado, 4 de maio de 2019

O Macumbeiro



À direita, de terno claro, Abelard Jacques Noronha

Na edição do Jornal do Brasil de 24 de novembro de 1944, Ary Barroso, cronista, letrista, apresentador de televisão, narrador de futebol, autor da música/hino Aquarela do Brasil, faria o mais enobrecedor dos textos a respeito do grande internacional da década de 1940. O título de sua crônica era: “O Macumbeiro do Profissionalismo Indígena”.

A postura do presidente do Sport Club Internacional e os expressivos resultados do Rolo Compressor foram homenageados e transcrita abaixo integralmente:

“O Macumbeiro do Profissionalismo Indígena”.

Ary Barroso

Nos áureos tempos do amadorismo puro, o jogador escolhia livremente o clube dos seus afetos e envergava a sua camiseta com orgulho e entusiasmo. Os voos eram raros e, quase sempre, provocavam escândalo. Quando um atleta qualquer trocava de clube, era cognominado sarcasticamente de borboleta. Os borboletas podem ser os precursores da “insensibilidade clubística” que contaminou o nosso profissionalismo. O regime da remuneração organizava (ou desorganizada?) veio acabar definitivamente com o lado emocional do futebol. Hoje em dia o jogador não tem mais preferência. Vai para o Grêmio que melhor lhe pagar. Não joga por causa do clube, senão pelo contrato a prazo fixo. Tanto se lhe faz vestir uma camisa branca ou preta, azul ou vermelha, aqui ou em São Paulo, no Norte ou no Sul. Todo fim de ano é este corre-corre tremendo em busca de craques, com operações mais ou menos escusas e expedientes geralmente inferiores.

No panorama do profissionalismo brasileiro, porém, há um grupo de jogadores sui generis. As abarrotadas arcas de dinheiro dos clubes milionários do Rio e de São Paulo absolutamente não seduzem o jogador deste grupo. São profissionais com mentalidade amadorista. Sentem-se bem onde estão e ouvem com singular desinteresse as ternas e embaladoras canções das sereias astutas que pretendem abraçar. Refiro-me ao notável grupo de profissionais do Internacional de Porto Alegre!...

O estribilho destas canções de amor é o mesmo com pequeninas adaptações:

− Que é que vocês pretendem da vida, perdidos lá pelas lonjuras dos pampas? A felicidade está por aqui. Há dinheiro, fama, popularidade, cartaz, enfim... Vamos pensar no dia de amanhã.

E eles continuam firmes no Internacional... Sai jogador do Pará, de Pernambuco, da Bahia, de Minas Gerais, do Paraná. Do Internacional não sai. Os emissários vão ao sul e voltam desnorteados com o livro de cheques intacto. Que será isso? Não é por falta das sereias cantarem para eles o chorinho buliçoso e metálico das cifras. Há qualquer segredo no apego destes profissionais do Internacional ao próprio clube.

Alguém dirá:

− São muito burros.

Responderei:

− De burro não têm nada. São divinamente sagazes e inteligentes. Querem saber o que um deles me disse?

− Não me interessam as propostas formidáveis que constantemente nos fazem representantes de clubes cariocas e paulistas. Não deixo o Internacional. Vivo bem por lá, rodeado de amigos sinceros, protegido por meus diretores e amparado pela minha torcida. Por que hei de abandonar o agradável ambiente em que vivo, pela ambição de mais alguns cruzeiros? Nem tudo neste mundo se pode comprar com dinheiro. Não, estou satisfeito no Internacional e já que comecei neste clube, nele hei de terminar minha carreira. Se o futebol brasileiro precisar de meus modestos recursos, estarei a sua disposição com prazer e honra. Agora, clube, só o meu.

Quando o craque terminou eu ainda continuei olhando para ele, meio tonto, meio abobalhado, sem capacidade para articular uma palavra. Percebendo minha atitude, sublinhou as suas expressões com este período definitivo:

− É isso mesmo, “seu” Ary.

Uma espécie de tiro de misericórdia.

Sacudi a cabeça como quem espanta o sono e rapidamente dei um pulaço na cadeira e fui cair no gabinete de trabalho do senhor Abelard Jacques Noronha*, na capital gaúcha, para perguntar-lhe com a sofreguidão dos curiosos impenitentes:

− Presidente, o senhor que é macumbeiro do profissionalismo indígena, o senhor que faz despachos terríveis e os coloca na porta da casa de seus jogadores a ponto de inocular-lhes a mística internacionalista, o senhor que não tem medo de tenores e muito menos de sereias, o senhor feiticeiro dos pampas, quer me revelar a sua reza milagrosa? Olhe, que sabe não é isso que está faltando ao futebol brasileiro e nós seremos capazes de fazer uma revolução no profissionalismo fazendo de todos os jogadores gente da marca dos seus jogadores. Ah, pai de santo invencível, me dá um pouco de seu marafo.

Porque, meus senhores, a obra do presidente do Internacional tem sido tão útil, tão grande e tem produzido tão admiráveis frutos que ele pode ser apontado como único em sua terra, pondo amor no coração dos seus contratados e retendo no seu clube astros de invulgar brilho, como este gigantesco Ávila, este satânico Adãozinho, este incansável Abigail e esta maravilha que é Tesourinha. Eta macumbeiro brabo e perigoso.

(Do livro “A História dos Grenais”, de David Coimbra,
Nico Noronha, Mário Marcos de Souza, Carlos André Moreira)
  
*Presidente do Internacional no período de 1943-1944.

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