domingo, 18 de setembro de 2022

O céu infinito da bandeira do Brasil

 “Os símbolos nacionais são de todas, de todos e de todes”,

 escreve professor de História. 

Nilton Mullet Pereira*

Lembro, lá nos idos dos anos 1970, época difícil e angustiante da ditadura civil-militar, quando ainda cursava os anos finais do Ensino Fundamental, dos cadernos que estampavam uma bandeira do Brasil e o Hino Nacional, na contracapa. Lembro também que, no dia 7 de Setembro, os desfiles davam o tom de um feriado para celebrar, ao modo dos militares, a independência do Brasil, ainda que eu, menino, nem tivesse ideia do que acontecia, pois eram anos de chumbo, anos de perdas incontáveis para muitas pessoas e para o país, anos de um gigantesco silêncio/silenciamento. Mas, também, foram anos de resistência, nas ruas, nas fábricas e nas salas de aula de História e outras. 

Naquela época, a bandeira do Brasil parecia ser intocável por pessoas comuns, pois foi tornada o bastião de um regime de exceção, de cerceamento das liberdades, de vigilância, de controle e de tortura. A bandeira que víamos nos livros de História e nos cadernos escolares nem parecia nossa, se mostrava como um símbolo de um governo específico, de um modo singular de pensar a política e a vida, o modo da ditadura. Logo, um símbolo que deveria ser representativo de todo o país, um lugar tão plural e diverso como o Brasil, foi vergado como um signo que exalava parcialidade de uma ideologia autoritária, que não suportava a oposição ou as existências que eram consideradas fora das normas e dos padrões da moral instituída pelo governo ditatorial. 

A bandeira, signo de um país de muitos povos, de muitas línguas, de muitos idiomas, de muitas e incontáveis maneiras de ser e de existir, serviu como uma estratégia simbólica de exclusão. Ou seja, portar a bandeira nacional somente era “permitido” para quem era considerado verdadeiramente brasileiro, na ótica do regime. Os opositores, ditos comunistas e soviéticos, independentemente de sua ideologia, de seus partidos, de seus gostos, eram considerados indignos da bandeira e dos símbolos nacionais. De resto, todas as pessoas que se desvirtuavam da política e da moral do governo ditatorial, eram acusadas de serem contra o Brasil, logo, distantes dos símbolos da nação. 

Contudo, o movimento das Diretas Já, em 1983/1984, que reivindicava eleições diretas para presidente da República, ousou empunhar a bandeira e dar a ela uma outra significação. Nos mais diversos comícios e passeatas pelas liberdades democráticas, a bandeira do Brasil foi para as ruas comungar com pessoas de diferentes cores, tendências políticas, formas de pensar e de viver. As pessoas passaram a “vestir a bandeira”, mostrando aos governantes que os símbolos nacionais são de todas, de todos e de todes. Não foi por acaso que a música foi um dos elementos que uniu o povo brasileiro em torno da ideia de uma pátria livre. Sim, livre das garras de um governo que impedia, inclusive, a música, através da prática da censura, cerceando até mesmo aquilo que se podia gostar, ouvir, escutar, experimentar. A luta pela redemocratização implicava essa simplicidade que é poder experimentar a vida de um modo não escrito, não determinado, não definido por outrem. Porque o direito à experimentação implica o direito ao respeito e ao diálogo. 

Daí por diante, os movimentos sociais, os partidos, a música, as artistas, os operários, a escola, a sala de aula de História puderam, novamente, misturar a bandeira do Brasil com uma série de outras bandeiras, de tudo o que é bandeira dos que gritam pelo simples direito de existir, pelo direito de estar vivo e de dizer não, chega, basta. Mas jamais se misturou a bandeira do Brasil a movimentos de caráter fascista ou nazista ou qualquer ideologia que pregasse o ódio ao outro ou contra a criação de um mundo não plural. 

Nem imaginavam, entretanto, os professores, as professoras e suas aulas de História, que estaríamos, depois de aproximadamente 40 anos, mais uma vez alienados dos símbolos nacionais. Mais uma vez, a bandeira do Brasil fora capturada, como se fosse um símbolo de um movimento muito particular, de poucas pessoas, que lhe tomou como se fora uma coisa, um bem, uma propriedade, ao ponto de fazer confundir o seu movimento, o seu partido, com o verde, o amarelo, o azul e as estrelas, da NOSSA bandeira. 

Enfim, quem sabe nossos cadernos escolares, nossos livros, as ruas, as fábricas, os campos, a cidade, pessoas de todas as religiosidades, de todas as cores, de todos os gostos, não retomam a bandeira e fazem do azul, onde estão destacadas as estrelas, um céu infinito, de vozes que opinam, que propõem e que querem imaginar um Brasil unido pela bandeira da liberdade de existir e também da liberdade de lutar por dias melhores, sem ser vitimado pelo ódio dos que não suportam a multiplicidade do mundo. 

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(*) Professor da área de ensino de História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 

(Do jornal Zero Hora, caderno DOC, setembro de 2022) 

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