quinta-feira, 14 de abril de 2016

A cabeça de Rui Barbosa



Do livro:
Pequeno Anedotário da Academia Brasileira,
de Josué Montello

Martins Fontes, temperamento ruidoso e comunicativo, sempre a espalhar a alegria à sua volta, rindo, gesticulando e admirando, havia regressado ao Rio de janeiro, depois de longa ausência nos confins do Amazonas.

A chegada do poeta alvoroçou a roda literária. E como por esse tempo o cinema – o cinematógrafo, como então se dizia – fosse a grande novidade, lá se foram eles, os prosadores e poetas da amizade de Martins Fontes, ver o novo filme que atraía a atenção da cidade.

Entraram ruidosamente, falando alto e rindo, animados pelo líder da alegria que tornara a seu posto. E Martins Fontes, à frente do grupo, atravessou a sala em penumbra, comandante feliz da turma boêmia:

– Aqui, aqui, aqui – dizia ele mostrando a fila onde deviam sentar-se.

Logo estalaram as cadeiras. Riso. Piadas fortes. Um dito alegre. Um apelido afetuoso. Mas a seguir serenaram os rumores, à medida que a película entrou a interessar.

De repente, acederam-se as luzes. A projeção é interrompida. E um velhinho, cabeça enorme, bengala, chapéu na mão, caminhou por entre as cadeiras, em busca de seu lugar, enquanto se espalhava este sussurro de admiração e reverência:

– É o Rui.

Novamente as luzes apagaram. Outra vez o filme rodou, projetando-se na tela. E Belmiro Braga, perto de Martins Fontes, entrou a mexer-se, aborrecido por sentir a visão prejudicada pela cabeça de Rui Barbosa – justamente quando iniciava um namoro, duas filas adiante...

– Não veremos nada – queixou-se, baixinho – A abóbada daquele crânio tapa tudo! A cabeçorra nos obumbra.

Afinal, aquietou-se, resmungando o seu tanto. Mas o filme era alegre, e os rapazes, em certos momentos, sempre comandados por Martins Fontes, estalaram na amplidão da sala uma gargalhada forte, obrigando mestre Rui a voltar-se, ar contrariado, a exigir silêncio e respeito com a severidade muda de seu olhar. E ninguém mais se animou a falar ou a mexer-se na cadeira.

Ao fim da sessão, deixaram os rapazes que Rui Barbosa passasse à frente. E foi ele que puxou conversa com os rapazes, comentando alegremente a película.

Orgulhosos do diálogo com o mestre, saíram os boêmios à rua, ladeando o conselheiro. E vieram com ele até a carruagem que o esperava na Avenida Rio Branco.

E Rui, antes de subir, despedindo-se:

– Obrigado pela companhia. Vossa guarda de honra me desvanece: não há mais bela, nunca a tive mais grata!

Estalaram as palmas. E Rui subiu ao seu carro, a acenar para os jovens, sobretudo para Martins Fontes, que se esticava na ponta dos pés, à borda da calçada, feliz, radiante.

Logo depois, seguiram os boêmios para um café da Rua Gonçalves Dias. E ali, apanhando uma folha de papel e um lápis, Belmiro Braga, ainda aborrecido por não ter namorado a seu gosto, escreveu esse epigrama:

A um certo cinema fui
E me sentei junto ao Rui,
E a sua cabeça – um mundo
De tanto saber profundo –
Não me deixou ver o rosto
Do meu amor... Que desgosto!

Amo ao grande Rui com ânsia,
Mas naquela circunstância...
Que nunca tal me aconteça!
Eu cheguei a ter vontade
De ver o Rui... sem cabeça!




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