Do livro:
Pequeno Anedotário da
Academia Brasileira,
de Josué Montello
Martins Fontes, temperamento ruidoso
e comunicativo, sempre a espalhar a alegria à sua volta, rindo, gesticulando e
admirando, havia regressado ao Rio de janeiro, depois de longa ausência nos
confins do Amazonas.
A chegada do poeta alvoroçou a roda
literária. E como por esse tempo o cinema – o cinematógrafo, como então se
dizia – fosse a grande novidade, lá se foram eles, os prosadores e poetas da
amizade de Martins Fontes, ver o novo filme que atraía a atenção da cidade.
Entraram ruidosamente, falando alto e
rindo, animados pelo líder da alegria que tornara a seu posto. E Martins
Fontes, à frente do grupo, atravessou a sala em penumbra, comandante feliz da
turma boêmia:
– Aqui,
aqui, aqui – dizia ele mostrando a fila onde deviam sentar-se.
Logo
estalaram as cadeiras. Riso. Piadas fortes. Um dito alegre. Um apelido
afetuoso. Mas a seguir serenaram os rumores, à medida que a película entrou a
interessar.
De repente, acederam-se as luzes. A
projeção é interrompida. E um velhinho, cabeça enorme, bengala, chapéu na mão,
caminhou por entre as cadeiras, em busca de seu lugar, enquanto se espalhava
este sussurro de admiração e reverência:
– É o Rui.
Novamente as luzes apagaram. Outra
vez o filme rodou, projetando-se na tela. E Belmiro Braga, perto de Martins
Fontes, entrou a mexer-se, aborrecido por sentir a visão prejudicada pela
cabeça de Rui Barbosa – justamente quando iniciava um namoro, duas filas
adiante...
– Não veremos nada – queixou-se,
baixinho – A abóbada daquele crânio tapa tudo! A cabeçorra nos obumbra.
Afinal, aquietou-se, resmungando o
seu tanto. Mas o filme era alegre, e os rapazes, em certos momentos, sempre
comandados por Martins Fontes, estalaram na amplidão da sala uma gargalhada
forte, obrigando mestre Rui a voltar-se, ar contrariado, a exigir silêncio e
respeito com a severidade muda de seu olhar. E ninguém mais se animou a falar
ou a mexer-se na cadeira.
Ao fim da sessão, deixaram os rapazes
que Rui Barbosa passasse à frente. E foi ele que puxou conversa com os rapazes,
comentando alegremente a película.
Orgulhosos do diálogo com o mestre,
saíram os boêmios à rua, ladeando o conselheiro. E vieram com ele até a
carruagem que o esperava na Avenida Rio Branco.
E Rui, antes de subir, despedindo-se:
– Obrigado pela companhia. Vossa
guarda de honra me desvanece: não há mais bela, nunca a tive mais grata!
Estalaram as palmas. E Rui subiu ao
seu carro, a acenar para os jovens, sobretudo para Martins Fontes, que se
esticava na ponta dos pés, à borda da calçada, feliz, radiante.
Logo depois, seguiram os boêmios
para um café da Rua Gonçalves Dias. E ali, apanhando uma folha de papel e um
lápis, Belmiro Braga, ainda aborrecido por não ter namorado a seu gosto,
escreveu esse epigrama:
A um certo cinema fui
E me sentei junto ao Rui,
E a sua cabeça – um mundo
De tanto saber profundo –
Não me deixou ver o rosto
Do meu amor... Que desgosto!
Amo ao grande Rui com ânsia,
Mas naquela circunstância...
Que nunca tal me aconteça!
Eu cheguei a ter vontade
De ver o Rui... sem cabeça!
Nenhum comentário:
Postar um comentário