Por Daniel Fábio
Jacob Nogueira
O tema não é novo, e também não é particularmente relevante
no plano pragmático. Mas, por atingir egos e arraigadas práticas culturais, é
deveras interessante. Afinal de contas, o advogado tem ou não tem o direito de
ser chamado de “doutor”?
Sempre tive a opinião de que o título
de “doutor” deveria ser reservado a quem tivesse obtido título acadêmico de
doutorado. Quando mais jovem, me recusava terminantemente a chamar de doutor
qualquer operador do direito, seja advogado, promotor ou juiz. Hoje, percebo
que os usos e costumes locais acabaram erodindo aquela outrora inabalável
convicção, de modo que me já valho do título para endereçar colegas e
magistrados.
Nada obstante, até hoje me sinto
levemente desconfortável quando me chamam de “Dr. Daniel”. Tenho impressão de
que uma pequena fraude está sendo cometida.
Mas o que me irrita profundamente é
quando um advogado se apresenta dizendo que é o “Dr. Fulano de tal”; pior do
que isso só mesmo quando o advogado exige ser chamado de doutor.
Nos Estados Unidos, para que o
cidadão se torne advogado, deve concluir primeiro uma graduação qualquer, e
depois fazer um curso de pós-graduação (sim, lá Direito só tem na pós) que lhe
confere o título de J.D. (Juris Doctor). Portanto, no sistema norte-americano
todos os advogados são, em tese, “doutores em direito”. Agora, pergunte se
ALGUÉM lá chama qualquer advogado de Doctor? De jeito nenhum. A não ser que o
advogado seja também médico, PhD em outra área, ou conclua um doutorado em
direito (J.S.D. ou Juris Scientia Doctor) será respeitosamente chamado por
todos de senhor. E não se incomoda nem pouquinho com isso.
Agora, cometa o despautério de chamar
um advogado tupiniquim recém-graduado de senhor para ver o que acontece…
Formei muito jovem na UA (hoje Ufam)
e tive a oportunidade de fazer e terminar meu mestrado muito cedo. Quando
voltei do mestrado para o Brasil, tinha apenas 21 anos de idade. Também tinha
vindo de uma temporada de estudar e trabalhar num escritório jurídico nos
Estados Unidos (onde, como dito, ninguém é chamado de doutor). Tinha, ainda, a
mania de não chamar ninguém de doutor.
Estava participando de um das minhas
primeiras audiências cíveis desde que retornei. Era uma audiência de
conciliação naquele apertado Fórum da Aparecida (do tempo em lá se situava a
justiça comum). O meu ex-adverso – vamos chamá-lo de Dr. Beltrano, advogado
também muito jovem, com OAB novinha em folha – explicou ao juízo como chegou à
sua proposta de acordo. Passei a fazer uso da palavra para explicar porque o
acordo não seria possível nos termos propostos. Disse que “o senhor beltrano”
não levou em conta alguns adiantamentos já feitos por minha cliente, mas que as
preocupação do “senhor beltrano” e sua clientes seriam atendidas, com certas
modificações, na nossa contra-proposta, e que o “senhor beltrano” podia ficar
despreocupado que seus honorários seriam preservados, no entanto seria necessário
que o “senhor beltrano”…
Neste momento o Beltrano pula da
cadeira: “Excelência, por favor! O Doutor Daniel está me desrespeitando! Eu
EXIJO que me trate da forma apropriada e me chame de Dr. Beltrano”
Agindo com a prepotência que é
própria da inexperiência e da pouca idade, respondi: “Alto lá. Doutor Daniel,
não! Eu só tenho mestrado. Por favor, não me atribua honrarias a que não faço
jus. Quanto ao colega, peço desculpas. Não sabia que era doutor.” E me
dirigindo ao próprio “Doutor, me desculpe. Aproveitando, eu estou até
procurando onde fazer um bom doutorado. O seu foi feito onde?”
O Dr. Beltrano ficou lá, em pé,
imóvel, surpreso, tentando dizer algo, mas sem conseguir passar da primeira
sílaba do que iria dizer. O Juiz do feito imediatamente consignou que não havia
acordo e rapidamente encerrou a audiência.
Hoje, relembrando este episódio com o
benefício dos anos agregados, constato que eu é quem estava errado. O uso do
Dr. para operadores do direto é tão comum, e a minha postura tão heterodoxa,
que ele realmente acreditava que eu estava o ofendendo – ou melhor,
desrespeitando – ao chamá-lo de “senhor”. Além disso, minha resposta foi
despropositada e deselegante. Dr. Beltrano, se estiver lendo este texto, aceite
minhas sinceras escusas.
O interessante é que o inverso não
ocorre. A nossa sociedade insiste em chamar bacharéis de Doutores, mas não
exige o mesmo tratamento de quem tem PhD.
Por exemplo, lembro de um caso
narrado pelo Dr. Estevão Monteiro de Paula, que é PhD pela Universidade do
Tennessee (salvo engano em engenharia florestal) e ocupou aqui no Amazonas o
cargo de presidente do Instituto de Proteção Ambiental do Estado. Como parte de
suas atribuições, compareceu a uma audiência na Vara do Meio Ambiente. Na hora
de assinar o termo estava lá o Dr. Juiz, Dr. Promotor, Dr. Advogado da empresa,
Dr. Procurador do IPAAM. O único nome que não estava prefixado de Dr. era o do
único PhD naquela sala.
Também meu pai, mestre, doutor, e
pós-doutor em engenharia foi chamado a vida inteira de Professor Vicente por
seus colegas de trabalho. Isto é, até ele se formar também em direito. Aí , passou a
ser o Doutor Vicente.
Se o debate sobre o “tema do
Doutor” interessa, recomendo fortemente a leitura deste artigo e seus respectivos
comentários do Arbítrio do Yúdice, que foi a inspiração do presente texto. Lá
estão os argumentos técnicos tanto para desautorizar o uso do Doutor (no texto
propriamente dito) quanto para justificar o seu uso (nos comentários).
Dia 19 de maio,
comemoramos o Dia de Santo Ivo,
o Padroeiro dos Advogados.
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