A mais insólita de todas as fugas
Novembro de 1956
É uma noite clara, fria e ventosa. Os
detentos da Ilha do Presídio* já se recolheram às suas celas, com exceção de
dois. Júlio de Castilhos Pettinelli e Ettore Capri permanecem na cozinha, fazendo
a limpeza das dezenas de pratos, panelas e talheres utilizados durante a janta.
Prolongam a tarefa muito além do tempo necessário, até que tudo se aquiete.
Quando só resta o ruído da vegetação sacudida pelo vento e das ondas do Guaíba
de encontro ao pequeno atracadouro, Júlio olha para Ettore.
− É agora!
Recolhem
os dois maiores panelões e algumas colheres de pau e rumam para a margem oposta
ao atracadouro, esgueirando-se entre os pedregulhos, arbustos, cactos e
corticeiras. Alcançam o ponto desejado, ao lado de uma pedra gigantesca que os
protege da visão das guaritas. Ali, encontraram dois pedaços de tábua, uma
folha de cortiça e cordas, que haviam escondido antecipadamente.
A operação é complicada. Eles devem
amarrar as tábuas revestidas de cortiça nas alças dos panelões, construindo
assim uma pequena barcaça na qual pretendem fugir da ilha. Os nós devem ser
apertados ao extremo, caso contrário, os panelões se soltarão, o que
significará um fim trágico para sua aventura. A construção do “barco” dura
quase uma hora.
− Tem certeza de que funciona? –
pergunta Ettore.
− Na teoria, é pra funcionar. Vamos
ver na prática.
As condições são desfavoráveis. A
orientação do vento os obrigará a tomar o rumo do município de Guaíba e não da
Capital, como pretendiam.
Antes de colocarem a geringonça na água,
Ettore fraqueja:
− Acho que vou desistir.
− Agora? – exclama Júlio.
− Está muito ventoso. Se essa coisa
desmanchar, estou morto. Não sei nadar.
− Tu é que sabes – diz Júlio.
Quando vê Júlio se afastar da margem
a bordo da improvisada embarcação, Ettore grita:
− Tá bem, tá bem. Eu vou junto.
As luzes dos holofotes das guaritas
dançam sobre as ondulações do Guaíba, enquanto, lentamente, o bote improvisado
se afasta da ilha. Com alguma dificuldade, Ettore se mantém equilibrado sobre a
tábua, enquanto Júlio procura assegurar que os nós que a prendem aos panelões
não se desmanchem com o fustigar das águas.
Percebem, então, que o vento não os
levará para a margem de Guaíba e sim os empurra para o Sul, na direção da Lagoa
dos Patos. Serão horas de viagem a esmo, sem nenhuma condição de atingirem a
margem. Júlio sabe que o bote logo irá se desmanchar diante da fúria dos ventos
e das águas.
Ettore fatalmente sucumbirá e ele,
mesmo sendo um bom nadador, não terá forças e fôlego suficiente para alcançar a
terra segura. Olha para trás e consegue, na claridade da noite, vislumbrar a
ilha e seus holofotes, cada vez mais longe. Começa a sentir um mal-estar. O
plano de fuga no qual estão empenhados é uma insanidade que irá cobrar de ambos
um preço extremo: suas vidas.
A embarcação ingressa em uma área
aberta do Guaíba, na qual o vento vem direto da foz de Itapuã, sem as barreiras
dos morros situados às margens, erguendo ondas de mais de dois metros de
altura. Açoitados pela ventania e pela água que espirra do contato com o barco,
Júlio e Ettore buscam se manter em um equilíbrio precário.
Sua tentativa é redirecionar o barco
para as margens, mas o vento se mostra impiedoso. Júlio atira-se na água e
tenta nadar com um dos braços e puxar a embarcação com o outro. Ettore se
mantém agachado sobre as tábuas e tenta remar com as colheres de pau.
Seus uniformes gastos começam a
desfiar, fustigados pelo vigor das águas. Já perderam a noção do tempo que
estão ali à mercê do vento e das ondas. Ettore permanece deitado sobre a base
da madeira, exausto de tanto remar. Júlio boia agarrado a uma das alças do
panelão. O frio enrijece seus braços e anestesia suas pernas.
− Dessa não escapamos – ele diz a
Ettore e percebe que o parceiro perdeu os sentidos.
O vento ameniza. Por trás dos morros
de Porto Alegre, Júlio enxerga um suave clarão que anuncia o amanhecer.
Volta-se para o outro lado e vê algo inacreditável. A vegetação da margem está
próxima, não mais de cinquenta metros. Júlio reúne suas últimas forças e tenta
algumas braçadas até que seus pés sentem o leito do Guaíba.
Júlio e Ettore repousam nos matagais
próximos e despertam com dia claro. Junto a um casebre, roubam roupas
estendidas no varal e seguem percorrendo a orla, tentando descobrir uma forma
de chegar a Porto Alegre. Deparam-se com uma obra junto à margem, onde há uma
pequena lancha a motor estacionada. Júlio vale-se de sua lábia para iludir o
capataz. Diz que são pescadores e necessitam resgatar seu barco que havia emborcado
no rio.
A bordo da lancha Floresta, eles
costeiam a área central do município de Guaíba e rumam céleres em direção a
Porto Alegre. À altura do Armazém C1 do Cais central, os aguarda uma lancha
repleta de policiais armados. A fuga mais inusitada da história de Porto Alegre
chega a o final, mas não seria a última de Júlio de Castilhos Pettinelli.
Epílogo
(...)
Da pena inicial de dois anos por
furto leve, Júlio de Castilhos Pettinelli cumpriu um total de 28 anos de prisão.
Ainda estava preso quando casou com Flávia e nasceram seus três filhos. Solto,
penou um longo tempo até conseguir seu primeiro emprego de carteira assinada na
loja de materiais de construção Ferraço, com quase 60 anos de idade.
(Do livro “20 Relatos
Insólitos de Porto Alegre”,
de Rafael Guimaraens)
*A Ilha do Presídio também é chamada de Ilha das Pedras
Brancas.
Como fugir da ilha?
De barco, era a única forma de sair
da ilha. A nado, dificílimo; conseguir um barco, improvável; fazer um barco,
impossível; conseguir fugir da ilha, nem pensar! Um conseguiu fugir de caiaque.
Outros tentaram, mas morreram afogados.
Histórico da Ilha
→ A ocupação da Ilha das Pedras
Brancas iniciou em 17 de julho de 1857, quando o Exército construiu no local a
4ª Casa da Pólvora de Porto Alegre, que funcionou até meados de 1930. Na década
de 50, passa ser utilizada como laboratório para desenvolver vacina contra a
peste suína.
Casa prisional até 1983.
→ Em 1956, a ilha passa a
abrigar uma penitenciária de segurança máxima. Durante a ditadura, uma ala da
casa prisional recebe presos políticos. Em 1973, a prisão é
desativada, reabrindo em 1980. Denúncias de torturas e maus-tratos levam o
governo do RS a desativar o presídio em 1983.
→ Após a desativação do presídio,
surgiram muitos projetos de ocupação, mas, até hoje, nenhum foi colocado em prática. A ideia agora
é implantar um Espaço Gourmet na ilha, possibilitando alternativa de happy hour
aos visitantes.
Cronologia
1857: A 4ª Casa de Pólvora é erguida pelo Exército imperial;
1930: A ilha é abandonada pelos militares;
Década de 1950: Passa a abrigar um laboratório de pesquisa
para vacina contra a peste suína;
1956: Transformada em prisão;
1956: Júlio de Castilhos Pettinelli e Ettore Capri fogem
navegando em um imenso panelão;
1964: Presos políticos passam a ser enviados para a ilha;
1972: Raul Pont e Carlos Araújo (políticos gaúchos) são
transferidos para a ilha;
1973: Presídio é desativado pela
1ª vez, com morte de Eduardo Alves da Silva, ladrão de automóveis preso
irregularmente;
1980: O sequestro do cardeal dom
Vicente Scherer motiva a reativação do presídio pelo governador Amaral de Souza;
Abril de 1981: Comissão de
Cidadania e Direitos Humanos inspeciona o presídio em razão de denúncias de
maus-tratos;
6 de setembro de 1981: O estelionatário Jardelino de Barros
foge da ilha de caiaque;
25 de fevereiro de 1982: O
veleiro do juiz Monte Lopes é metralhado por suspeita de tentativa de ataque à
ilha;
18 de setembro de 1982: Os
traficantes João Carlos Faleiro e Hector Martins Thomaz morrem afogados durante
a fuga;
4 de abril de 1983: Governador Jair Soares fecha a prisão;
8 de abril de 1983: A administração da ilha passa para a
Secretaria de Turismo;
2005: Prefeitura de Guaíba é autorizada a explorar a ilha
por cinco anos;
Março de 2010: Governo do Estado amplia a cedência da ilha
para Guaíba por mais 25 anos.
(Correio do Povo)
O fujão e a panela
Por Renato Dornelles
A história com a qual abro o meu
Arquivo B.O. ocorreu na Ilha do Presídio, há quase 60 anos. Antes de mais nada,
é preciso situar o leitor acerca do cenário. Geograficamente falando, trata-se
de uma pequena e rochosa ilha localizada no meio do Guaíba. Para quem a observa
a partir de Porto Alegre, fica na altura da Vila Assunção.
Como cárcere, abrigou presos
políticos durante a ditadura e, inclusive, recebeu uma visitante que viria ser
presidente da República, décadas depois. Mas isso é história para outro dia. A
utilização como prisão pela primeira vez deu-se de 1956 a 1973. Reativado em
1980, o presídio voltou a ser fechado, definitivamente, em 1983.
Os primeiros apenados levados para o local foram transferidos da Casa de Correção, ou o Cadeião da Volta do Gasômetro, em 1956. Logo na chegada, o diretor da prisão os reuniu no pátio e avisou: “Aqui não há possibilidade de fugas”.
No entanto, um dos internos, Júlio de
Castilhos Pettinelli, condenado por estelionato, levou apenas três meses para
desmenti-lo. Encarregado de lavar os enormes panelões nos quais era feita a
comida, o apenado certo dia embarcou em um deles e, com uma colher de pau como
remo, decidiu encarar o Guaíba. Dizem que levou praticamente um dia para chegar
em terra firme. Esse deve ter sido o problema: a demora permitiu que notassem
sua ausência. Quando “atracou”, já estava sendo aguardado pelos policiais.
Mesmo que sua suposta liberdade tenha
durado tão pouco, Pettinelli, ao menos, conseguiu entrar para a história do
sistema penitenciário gaúcho, quiçá brasileiro ou até mundial, pela
originalidade de seu plano de fuga.
(Da coluna Boletim de
Ocorrência, no Diário Gaúcho, abril de 2005)
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