segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

O meu cavalo



Bernardo Guimarães (1825-1884) matriculou-se na Faculdade de Direito de São Paulo. Durante o curso jurídico não se distinguiu como estudante, dedicando-se à literatura, principalmente à poesia, colaborando em revistas, onde se revelou um crítico mordaz.

Nessa fase fagueira da existência, o poeta, influenciado pelo modelo de Bron, entregou-se à vida boêmia, juntamente com Álvares de Azevedo, Aureliano Lessa e outros, cuja saúde foi prejudicada pelas extravagâncias e estroinices que praticavam.

Chegaram a fundar a sociedade Epicureia que tinha por fim realizar os sonhos do autor de Dom João. Reuniram-se em vários pontos, de preferência nos arrabaldes, e entregavam-se a toda a sorte de desvarios, chegando, certa ocasião, à loucura de ficarem encerrados durante quinze dias, à luz de candeeiros.

Estava Bernardo Guimarães, em companhia de alguns amigos, na redação do Correio Mercantil, quando lhe entregaram uma carta.

O romancista leu-a, empalideceu e desatou em pranto. Alguns minutos depois enxugou as lágrimas, pediu papel e encheu três ou quatro páginas com a sua letra rasgada e tortuosa. E soluçava enquanto redigia.

- Vamos ao café!

No botequim do Braguinha, sito ao largo do Rocio, leu o que havia escrito: era a poesia O meu cavalo, que consta de um dos seus livros, como composta em Minas.

A carta que recebera na redação do Correio Mercantil dava-lhe a triste noticia da morte do seu alazão.

(MOTA, Artur. Vultos e livros. Em MASUCCI, Fulco.
Anedotas históricas brasileiras)

Meu Cisne, é hora de dizer-te adeus!
De tudo que abandono
Não és por certo quem menos saudades
Mereces a teu dono.
.............................
Lá nos viçosos campos
Por onde entre colinas graciosas
O Quebranzol sereno remanseia,
E as ondas vagarosas
A luz de um céu esplendido alardeja,
Achei-te outrora livre como o vento
Em largo campo aberto,
Garboso chefe de formosa tribo,
Pascendo em paz as ervas do deserto.

Ao teu relincho qual clarim sonoro,
Retroando no fundo das valadas,
Alegres acudiam
Pela devesa as trépidas manadas,
E o bando das selváticas amantes,
Em torno arrebanhadas,
O colo luzidio
Airosas recurvando,
A crina ao vento dando,
Tu conduzias, rei das solidões,
Pelos infindos, verdes chapadões.

Mas, ah! foi esse o derradeiro dia
Da grata liberdade,
E dócil te curvaste à lei tirana,
De que tanto se ufana a humanidade.
A fronte altiva ao freio abandonaste,
Do homem à vontade
Curvaste o colo, e os passos regulaste.
Recebeste nos pés o férreo cravo;
De rei, que eras, te tornaste escravo!
Escravo, oh! não! deixaste sem queixume
De teu rio natal saudosas margens,
E a vida rude e inquieta,
Em que folgavas nas incultas vargens,
Para ser companheiro do poeta.

E pois adeus! pelas montanhas pátrias,
Em teu dorso possante
Não mais me levarás de hoje em diante,
Vagando a esmo nos estreitos vales,
Devaneando,
Cantarolando
Ou já cismando amores,
Ou da montanha aos ventos rugidores
Entregando a lembrança de meus males.

Embalado em teu rápido galope,
Não mais irei sozinho demandando
Do Itamonte o descalvado tope,
A escutar pelos penedos broncos
A voz dos ventos lôbrega ululando
Ou da cascata os roncos
Na profundez do abismo trovejando.

À minha voz com ímpeto brioso,
Resfolegando,
Caracolando,
Comigo te lançavas pelas sendas
Escabrosas das broncas serranias,
E nas quebradas invias
Como um tufão veloz desparecias;
A basta e longa cauda
Te ondeava, bem como alva cascata,
Que em rotas catadupas espumando
Dos montes se desata;
Aos ventos sibilando a coma esparsa,
A esvoaçar-te no garboso colo,
Dir-se-ia nívea garça
No voo apenas desflorando o solo.
E então cuidava, vendo às minhas plantas
Baixar a terra no horizonte raso,
Ir voando do Pégaso nas asas
Aos cumes do Parnaso.

Oh! se o destino te chamasse à guerra ...
Foras nos campos do sangrento Marte
Cavalgadura digna de Sesóstris,
De César, de Alexandre ou Bonaparte.

Mas se nas lides da feroz Belona
Não respiraste o pó de cem batalhas,
Se os pés não ensopaste em sangue humano,
Ao rebentar de bombas e metralhas,
Em mais doces conquistas
Já fizeste proezas nunca vistas.

(Cantá-las eu não posso, nem desejo;
Das línguas maldizentes tenho medo;
Es tu só que as conheces; e estou certo
Que guardarás fiel o meu segredo.)
.............................

Adeus, ó Cisne, sempre na minh'alma
De ti conservarei viva saudade;
E se eu puder, nas asas de um soneto,
Teu nome mandarei à eternidade.

Fica-te em paz, e em teus últimos dias
Livre-te o céu do mísero destino
Que teve o decantado lazarento
De mestre Tolentino.

Ouro Preto, 1858*

*Vide penúltimo, parágrafo do texto acima.

Nenhum comentário:

Postar um comentário