sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

O mármore que fala



Pietá de Michelangelo

Um enorme bloco de mármore de Carrara jazia há 35 anos nas oficinas da Catedral de Florença. Estreito, com 5 metros de altura e conhecido como o Gigante, começou a ser talhado por Agostino di Duccio, em 1466, e foi logo abandonado pela dificuldade em arrancar vida de um sólido com proporções tão desfavoráveis. Sua sombra tinha servido para alertar os escultores florentinos sobre os desafios de sua profissão. No entanto, o governo de Florença anunciou oficialmente o nome do jovem Michelangelo Buonarroti, de 26 anos, como aquele que vai tentar, por fim, dar forma à rocha desafiadora. O tema bíblico de Davi, proposto pelo artista para enfrentar o “Gigante”, não pôde ser mais adequado. “Davi usou uma funda para combater Golias. Eu usarei minha pua de escultor”, disse o artista.

Michelangelo vinha sendo aclamado como o maior escultor da atualidade desde quando terminou uma maravilhosa pietá – imagem da Virgem com Jesus morto em seus braços, tradicional na arte de Flandres. O artista se comprometera em contrato a realizar “o mais fino trabalho em mármore jamais visto em Roma”. O resultado excedeu as expectativas. O conjunto, em forma de pirâmide, é compacto e monumental. A figura do Cristo morto ainda parece ter vida correndo nas veias. Os olhos abaixados da Virgem, ao contrário da tradição, emocionam pela dor e pela resignação. Seu manto, majestosamente drapeado, arranca do mármore uma leveza imaginável. Na visão idealista de seu autor, a profunda beleza das duas figuras é a melhor tradução de sua nobreza de espírito.

Nos dias que passou analisando os veios e a estrutura do Gigante, Michelangelo revelou hábitos espartanos: trabalhava febrilmente, comia apenas um pedaço de pão no meio da jornada e tinha nas garrafas de vinho branco de Trebianno sua única concessão ao prazer. Dormia três horas por noite, geralmente calçado e com as roupas usadas durante o dia. Por vezes ficava tanto tempo sem tirar as botas que, ao fazê-lo, arrancava pedaços da pele dos pés. O promissor artista nasceu em Caprese, ingressou no ateliê de Ghirlandaio aos 13 anos e se tornou um dos protegidos de Lourenço, o Magnífico, até a queda da família Medici, em 1494. A lista de seus trabalhos anteriores a pietá não é extensa: os dramáticos relevos Madona das Escadas e Batalha dos Centauros (onde não há realmente centauros), uma estátua de Hércules com 2 metros, três figuras para a tumba de São Domingos, um Cupido vendido como falsa antiguidade ao cardeal de San Giorgio in Velabro, em Roma, e um Baco. A amostra, porém, já fazia prever um Davi portentoso para Florença.

(Texto da revista Veja Especial – de 2000)

P.S. Foi alterado o tempo de alguns verbos.


A história de Davi

Por Wim Van Aalst*

→ Para reiterar a história Bíblica de Davi, o jovem pastor que conquistou Golias, o guerreiro filisteu gigante, apenas com seu arpão e uma pedra, corta a cabeça do gigante e mais tarde torna-se o lendário rei Hebreu.

→ Era comum na segunda parte do século XV retratar Davi com a cabeça de Golias, mas aqui uma abordagem mais diplomática é usada para expressar o tema, um Davi solitário vislumbra o horizonte distante, o seu sobrolho franzido, avalia a força do seu oponente instantes antes da luta.
A sua expressão tensa contrasta fortemente com a sua pose relaxada. Ele está alerta, e, ao mesmo tempo, relaxado; sem medo, mas não gabarola. As suas pupilas são em forma de coração. Tudo o que ele vê é o alcance do seu coração, a sua postura gloriosa prevê já a vitória.

As imperfeições da estátua

→ Existem algumas imperfeições anatômicas na estátua que deixaram perplexos, ao longo dos séculos, aqueles que a apreciaram. Estas ‘falhas’ são difíceis de explicar, como simples erros, dado que Michelangelo era um profundo conhecedor da anatomia humana.

→ A cabeça de Davi demasiado grande e o seu torso ligeiramente aumentado são geralmente assumidos como uma escolha deliberada, para corrigir o volume diminuído da parte superior, que é percebida pela perspectiva do observador. A estátua tinha originalmente como destino o telhado da catedral de Florença.

→ É uma teoria que realmente faz sentido: nessa altura, a perspectiva não tinha segredos para os artistas italianos. Mas isso não explica a mão direita anormalmente grande.

→ Podíamos supor que o tamanho da mão direita tinha como propósito servir para equilibrar a atenção do observador, mas isto é pouco provável, pois a definição exagerada dos mamilos já é suficiente para equilibrar a nudez pélvica. Portanto qual a razão deste ‘erro’?

→ Michelangelo compreendeu a importância de fazer com que este rapaz pastor parecesse capaz de derrubar um gigante – e em mais do que um contexto. Junto com a motivação religiosa, o tema do desprivilegiado que se torna vencedor também é importante na concessão da obra.

→ Nessa altura, Florença era uma cidade-estado independente ameaçada por poderosos rivais. Não seria suficiente se Davi fosse somente um rapaz bem parecido, exibindo apenas beleza e elegância. Ele teria que dar a impressão de ser um indivíduo que não deveria ser desconsiderado. E assim é.

→ Michelangelo foi bem sucedido na expressão da história Bíblica com diplomacia e eficiência. Esta estátua não é a figura de um desprivilegiado – é um aviso imbuído de uma glória avassaladora. “Não importa o quão grande é o rufião, ele irá pagar caro se desafiar o povo de Deus”.

→ Da base da estátua, essa mão enorme repousa ameaçadoramente como uma arma de alto calibre. Se houver desejo de confrontação, rapidamente esta se dissipa.

→ Nunca iremos saber em que medida a magnificência desta estátua contribuiu para assegurar a paz ou evitar invasões estrangeiras, mas, sem dúvida, a absoluta capacidade artística que esta peça inspira causou admiração dos estrangeiros e conseguiu mais respeito do que seria possível conseguir com uma mensagem ameaçadora.


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*Wim Van Aalst possui um mestrado em publicidade e design gráfico. Pintor autodidata, ele começou o seu trabalho como artista profissional em 2008 ensinando aos estudantes as técnicas e teorias da pintura a óleo tradicional.


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Certa vez alguém encontrou Michelangelo esculpindo com seu formão numa enorme rocha sem forma. A pessoa indagou ao escultor o que ele estava fazendo. “Estou soltando o anjo aprisionado nesta rocha.” Ele respondeu.

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