Juremir Machado da
Silva
“Deus. Eu me lembro! Eu me
lembro! – Era pequeno…” Os versos de Casemiro de Abreu ressoam em mim como os
grossos pingos da chuva batendo na lata da única peça da casa que não era
coberta com capim Santa Fé. Eu me lembro, eu me lembro, era pequeno, de tudo o
que vivemos e que não sabíamos ser nosso destino. Um presente enraizado no
passado do qual só conseguiríamos nos arrancar pela força dos livros. Eu me
lembro da geada, do vento sibilando nas frestas, do fogo no galpão, das
estradas encharcadas nos longos invernos, do barro vermelho no Alto Grande, dos
muito pobres pedindo esmola num lugar onde todos tinham muito pouco a oferecer.
Eu me lembro, era pequeno.
Sim, eu nunca esqueci. Eu me lembro,
era pequeno, dos primeiros dias na cidade, do medo da novidade, de tantos
“autos” passando sem parar. Eu me lembro da vida no campo, do latifúndio a
perder de vista, da pobreza de quase todos, da luz da lamparina bruxuleando nas
noites sobre as letras trêmulas das lendas do Sul, das madrugadas que prometiam
uma vida nova e traziam a cada dia a velha desigualdade. Da janela, vendo a
chuva que parecia eterna, eu via a nossa sorte selada. Era preciso se arrancar
dali puxando-se pelos próprios cabelos. Só a passagem do trem a cada dia
prometia outra vida, outra estação. O sonho era uma locomotiva vermelha abrindo
algum caminho para o futuro.
Claro que eu me lembro, era pequeno,
da inveja que sentíamos do dono do lugar, que passava solene na sua camioneta
de motor ronronante. Éramos 301. Divididos em dois grupos: ele e nós. Meu
bisavô fora estancieiro. Meu avô, dono de uma chácara. Meu pai, cabo da Brigada
Militar, cujo grande sonho era ter um pedacinho de terra para chamar de seu. Eu
me lembro, era pequeno, dos seus sonhos, dos “causos” que nos contava sobre
assombrações, cavalos ligeiros, jogos de truco, tiroteios, do seu amor pelos
animais, da sua luta cotidiana para abraçar o horizonte, que sempre se afastava
como a enormidade das terras de tão poucos donos. Por que nunca paro de me
lembrar? Não sei.
É do cair das noites que eu mais me
lembro, era pequeno, trazendo medo e melancolia, fantasmas e desesperanças,
mais frio e vento assobiando. Eu me lembro das nossas sombras desenhadas nas
paredes, da minha japona nova, azul e sintética, pegando fogo da lamparina,
comigo dentro, das caixas de lápis de cor, do terror que era sair à noite para
ir à “patente” no fundo do pátio, do canto dos galos anunciando um novo dia de
labuta e de esperança para todos. Mas eu me lembro também, felizmente, das
noites de verão coalhadas de estrelas, da algaravia dos pássaros na primavera,
dos pomares coloridos de frutas maduras, do arco-íris emendando coxilhas, das
nossas pandorgas enfeitando o céu anil nas manhãs da Semana Santa.
Eu me lembro, era pequeno, dos
velórios nas pequenas salas onde ninguém se sentava, com um pano branco na
porta e o caixão saindo pela janela. Eu me lembro das carreiras de cancha reta,
dos bailes de galpão, das campereadas antes do sol se incendiar no céu, das
águas irisadas de frio nos açudes de beira de estrada, das bergamoteiras quase
vergadas sob o peso das frutas, do cheiro de melão maduro nas lavouras, do
coração vermelho das enormes melancias que vendíamos na BR. Quando um carro
parava, vibrávamos como se fosse um gol do 14 de Julho, o Leão da Fronteira.
Por que nunca canso de me lembrar disso?
Sim, eu também me lembro dos
políticos da ditadura arrebanhando homens e mulheres nas carrocerias abertas de
camionetes para que votassem pela ARENA e não deixassem o comunismo tomar conta
do país. E o comunismo vinha sempre junto com o nome de Jango, que, às vezes,
era chamado de Jango Goulart ou de João Goulart, e de Leonel Brizola. Eu me
lembro que para insultar alguém a primeira palavra que vinha era tupamaro. Eu
me lembro, era pequeno, de um homem falando no pátio da escola sobre a natureza
de todas as coisas. Cada um tinha na vida, segundo ele, o que o seu destino lhe
reservara. Era preciso se conformar ou trabalhar muito para ter mais, mas nunca
querer dividir as terras dos outros mesmo que elas fossem enormes e
improdutivas.
Ele não dizia improdutiva. Eu me
lembro, era pequeno, ele falava “mesmo que elas estejam em repouso por algum
tempo”. Era um advogado. Eu me lembro do seu bigode aparado com esmero e de um
lencinho azul num bolsinho frontal do seu casaco, que ele chamava de paletó.
Tudo o que aprendo hoje, esqueço. A minha memória está abarrotada pelas
lembranças obsessivas daqueles tempos. Do que eu mais me lembro? Do contraste
entre pobreza e riqueza, que eu não entendia e não podia discutir. Eram tantos
ranchinhos, tanta casinha pobre, tanto puxadinho e tanto campo num silêncio
sepulcral. Só os livros me despertavam. Ciro Martins foi o primeiro a me
cutucar: “Que paz naqueles campos!”
Confesso, eu me lembro, era pequeno,
quando tudo se calcifica na memória, na alma e no imaginário, de tudo o que me
confundia. Havia tanto ar, tanto pasto, tanto céu e tanta mão calejada sem
colher à altura do que plantava para outros. Custei a compreender o que via. O
que eu via? Aquilo que sonhava.
(Correio do Povo,
março de 2018)
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