Inácio era o rei dos acanhados. Pelas
coisas mínimas, avermelhava, saía fora de si e permanecia largo tempo
idiotizado.
O progresso do seu namoro foi, como
era natural, menos obra sua que da menina, e da família de ambos, tacitamente
concertadas numa conspiração contra o celibato do futuro bacharel. Uma das
manobras constou do convite que ele recebeu para jantar nos Lemos, em certo dia
de aniversário familiar comemorado a peru.
Inácio barbeou-se, laçou a mais
famosa gravata, floriu de orquídeas a botoeira, friccionou os cabelos com loção
de violetas e lá foi, de roupa nova, lindo como se saíra da forma naquela hora.
Levou consigo, entretanto, para seu mal, o acanhamento. − e daí proveio a
catástrofe...
Lá, enquanto engoliam a sopa, teve
tempo de voltar a si e arrefecer as orelhas. Mas não demorou muito no
equilíbrio. A culpa aqui foi da dona da casa. Serviu-lhe dona Luiza, um bife de
fígado sem consulta prévia.
Esquisitice
dos Lemos: comiam-se fígados naquela casa até nos dias mais solenes.
Esquisitice do Inácio: nasceu com a
estranha idiossincrasia de não poder sequer ouvir falar em fígado − seu
estômago, seu esôfago e talvez seu próprio fígado tinham pela víscera biliar
uma figadal aversão. E não insistisse ele em contrariá-los: amotinavam-se
repelindo indecorosamente o pedaço ingerido.
Nesse dia, mal dona Luiza o serviu,
Inácio avermelhou de novo, e novamente saiu fora de si. Viu-se só, desamparado
e inerme ante um problema de inadiável solução. Sentiu lá dentro o motim das
vísceras; sentiu o estômago, encrespado de cólera, exigir, com império,
respeito às suas antipatias. Inácio parlamentou com o órgão digestivo.
Mostrou-lhe que mau momento era aquele para uma guerra intestina. Tentou
acalmá-lo a goles de Clarete, jurando eterna abstenção para o futuro, Pobre
Inácio! A porejar suor nas asas do nariz, chamou a postos o heroísmo, evocou
todos os martírios sofridos pelos cristãos na era romana e os padecidos na era
cristã pelos heréticos; contou um, dois e três e glup! Engoliu meio fígado sem
mastigar. Um gole precipitado de vinho rebateu o empache. E Inácio ficou a
esperar. De olhos arregalados, a revolução intestina.
O calouro, entretanto, não deu fé da
tagarelice; surdo às vozes do mundo, todo se concentrava nas vozes viscerais.
Além disso, a tortura não estava concluída; tinha ainda diante de si a segunda
parte do fígado engulhento. Era mister atacá-la e concluir de vez a ingestão
penosa. Inácio engatilhou-se de novo e − um, dois, três: glup! Lá rodou,
esôfago abaixo, o resto da miserável glândula.
Maravilha! Por inexplicável milagre
de polidez, o estômago não reagiu. Estava salvo Inácio. E como estava salvo,
voltou lentamente a si, muito pálido, com o ar dos ressuscitados. Chegou a
rir-se.
Estava nessa
doce beatitude, quando:
− Não sabia que o senhor gostava
tanto de fígado, disse-lhe dona Luiza, vendo-lhe o prato vazio − repita a dose.
Fora de si
outra vez, o pobre moço exclamou, tomado de pânico:
− Não! Não!
Muito obrigado!
E não houve salvação! Veio para o
prato de Inácio um novo naco − este formidável, dose dupla.
Um criado estouvadão, que entrava com
o peru, tropeçou no tapete e soltou a ave no colo de uma dama. Gritos,
reboliço, tumulto. Num lampejo de gênio, Inácio aproveitou-se do incidente para
agarrar o fígado e metê-lo no bolso.
Salvo! Nem dona Luiza nem os vizinhos
perceberam o truque − e o jantar chegou à sobremesa sem maior novidade.
(Monteiro Lobato,
Cidades Mortas)
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