sábado, 28 de abril de 2018

O fígado indiscreto



Inácio era o rei dos acanhados. Pelas coisas mínimas, avermelhava, saía fora de si e permanecia largo tempo idiotizado.

O progresso do seu namoro foi, como era natural, menos obra sua que da menina, e da família de ambos, tacitamente concertadas numa conspiração contra o celibato do futuro bacharel. Uma das manobras constou do convite que ele recebeu para jantar nos Lemos, em certo dia de aniversário familiar comemorado a peru.

Inácio barbeou-se, laçou a mais famosa gravata, floriu de orquídeas a botoeira, friccionou os cabelos com loção de violetas e lá foi, de roupa nova, lindo como se saíra da forma naquela hora. Levou consigo, entretanto, para seu mal, o acanhamento. − e daí proveio a catástrofe...

Lá, enquanto engoliam a sopa, teve tempo de voltar a si e arrefecer as orelhas. Mas não demorou muito no equilíbrio. A culpa aqui foi da dona da casa. Serviu-lhe dona Luiza, um bife de fígado sem consulta prévia.

Esquisitice dos Lemos: comiam-se fígados naquela casa até nos dias mais solenes.

Esquisitice do Inácio: nasceu com a estranha idiossincrasia de não poder sequer ouvir falar em fígado − seu estômago, seu esôfago e talvez seu próprio fígado tinham pela víscera biliar uma figadal aversão. E não insistisse ele em contrariá-los: amotinavam-se repelindo indecorosamente o pedaço ingerido.

Nesse dia, mal dona Luiza o serviu, Inácio avermelhou de novo, e novamente saiu fora de si. Viu-se só, desamparado e inerme ante um problema de inadiável solução. Sentiu lá dentro o motim das vísceras; sentiu o estômago, encrespado de cólera, exigir, com império, respeito às suas antipatias. Inácio parlamentou com o órgão digestivo. Mostrou-lhe que mau momento era aquele para uma guerra intestina. Tentou acalmá-lo a goles de Clarete, jurando eterna abstenção para o futuro, Pobre Inácio! A porejar suor nas asas do nariz, chamou a postos o heroísmo, evocou todos os martírios sofridos pelos cristãos na era romana e os padecidos na era cristã pelos heréticos; contou um, dois e três e glup! Engoliu meio fígado sem mastigar. Um gole precipitado de vinho rebateu o empache. E Inácio ficou a esperar. De olhos arregalados, a revolução intestina.

O calouro, entretanto, não deu fé da tagarelice; surdo às vozes do mundo, todo se concentrava nas vozes viscerais. Além disso, a tortura não estava concluída; tinha ainda diante de si a segunda parte do fígado engulhento. Era mister atacá-la e concluir de vez a ingestão penosa. Inácio engatilhou-se de novo e − um, dois, três: glup! Lá rodou, esôfago abaixo, o resto da miserável glândula.

Maravilha! Por inexplicável milagre de polidez, o estômago não reagiu. Estava salvo Inácio. E como estava salvo, voltou lentamente a si, muito pálido, com o ar dos ressuscitados. Chegou a rir-se.

Estava nessa doce beatitude, quando:

− Não sabia que o senhor gostava tanto de fígado, disse-lhe dona Luiza, vendo-lhe o prato vazio − repita a dose.

Fora de si outra vez, o pobre moço exclamou, tomado de pânico:

− Não! Não! Muito obrigado!

E não houve salvação! Veio para o prato de Inácio um novo naco − este formidável, dose dupla.

Um criado estouvadão, que entrava com o peru, tropeçou no tapete e soltou a ave no colo de uma dama. Gritos, reboliço, tumulto. Num lampejo de gênio, Inácio aproveitou-se do incidente para agarrar o fígado e metê-lo no bolso.

Salvo! Nem dona Luiza nem os vizinhos perceberam o truque − e o jantar chegou à sobremesa sem maior novidade.

(Monteiro Lobato, Cidades Mortas)

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